28.7.03

Desterreno

1.

Lembro da caligrafia firme riscando o papel, letra grande e inclinada enchendo as folhas como a boca colada no meu ouvido, salivando denúncias em voz profunda. Varei as páginas sem ler coisa alguma a não ser, de relance, que é um tipo de morte. Evitar ver o resto, primeira coisa a fazer é fechar essas caixas. Quando a conversa pesa, dizem qualquer negócio pra gente parar de falar ou mudar de assunto, amanhã é outro dia, jogar isso no lixo. Eu precisava ficar sozinha, não disse mais que isso; o justo era que eu saísse sem palavras que não pedi pra ler. Mas não escapei do espectro inconveniente da minha consciência, esse bicho que ataca à noite: se dormia, imaginava o que mais estava escrito, o que dizia o obituário.

É um tipo de morte em que o corpo persiste mas inanimado, vazio do que uma vez conhecemos. E são dois que desaparecem, desfigurados pela cisão, irreconhecíveis um pro outro. Os defuntos vão por aí, as mãos francas, abandonadas, roçando todos com veias quentes. Uns ressuscitam, braços – ah, e as pernas suadas - cruzados, mas sobre outro corpo. Estão novos, não se parecem nada com o que foram antes, e têm cheiro de carne viva. Outros seguem em avançado estado de decomposição. Todos irreconhecíveis, de qualquer maneira.

Quem aprende a aceitar a ausência dança sobre a terra que cobre os apegados. É nesses cadáveres que encarna o fracasso e o fracasso é a perda de todos os seus sonhos. Imagine-se despido de todos eles. Imagine-se sem poder imaginar. Querer e ter vergonha da vontade, como se você fosse indigno de desejar.

Quem pode se declarar acabado, fechar a tampa e sumir pro mundo? Eu não sei, ainda investigo uma resposta convincente, que ao menos me deixe dormir; procuro descobrir se eu devo e, principalmente, se eu posso, se existe escolha ou é o mundo que fecha a tampa do bueiro sobre mim. Aqui eu vou me imunizando e protegendo de todos os meus maiores medos, e meus medos foram, por enquanto estive calada, ameaças reais. Isto é pra ser esquecido, isto é um fragmento que eu não posso mais conter. Sou eu falando sozinha, confinada no espaço ridículo do esquecimento, que,

Que me fez pensar em respostas pras palavras que eu não li e que se vingam vazando pela minha cabeça na fumaça da paranóia, entre os infernos e alaskas da mesma estação, nessa cidade sempre quente onde tantas vezes me falta sonho, me falta religião, me falta querer. Quem era, o que eu fiz pra ele? Causei aos dois, são dois sem norte. E que sorriso besta é este que arregaça agora? A boca se desprende do meu ouvido ainda sussurrando remorsos pretéritos e cresce num vulto de terror espesso pelos muros de cimento cru, e as crianças não têm vontade de ir brincar na calçada. Ficam trancadas nos quartinhos remoendo culpas mínimas, sofrendo mais que os corpos ardendo de infância deviam agüentar, mas agüentam, agüentam, remorsos sufocados com biscoito e televisão, crescem dali pra casulos ainda menores. O crescimento é uma atrofia. As que colecionavam sinais, como eu, um dia deixam de confiar neles. Imaginam como seria olhar pela janela gradeada a placa na rua indicando o lugar do seu tempo estacionado, o que veriam senão o passado, redundante? Querer e ter vergonha de querer como se fosse ridículo esperar qualquer coisa, olhar pra frente. Olho pra baixo pela janela que aluguei por (quantas noites?) e enxergo o mosaico da feira a nove andares de mim: pontilhados de vermelho, laranja, verde e riscos vermelhos, brancos e encardido das lonas sobre jalecos sujos, cheiro de alho e peixe subindo junto com a música de um chocalho que não pára de acompanhar ancas gordas e sacolas que passam. Meu plano mais definido é descer e comprar pão, manteiga, leite, meia dúzia de tangerinas. Os odores da feira vão me deixar enjoada, é o máximo de adivinhação que eu faço sobre as conseqüências da execução do meu plano pouco ambicioso. Manhã cinza, a placa do hotel apagada. À noite fica verde e vermelha. Penso pequeno, em cores borradas. A sombra das árvores vai manchando o muro do hotel, formando figuras. Seus dentes crescem pelo muro rangendo no ritmo do chocalho até que a boca se arregace inteira diante da minha janela e alcance meu ouvido molhado de outras confidências: eu tô vivo, e você? Zomba, chchchchchchch, rárá. Se eu ainda soubesse enxergar de certa maneira, adivinhava que o tempo pulsa, respira, remove os mortos enquanto os vivos aguardam pra dar o bote. Ia decifrar futuros nos nomes das ruas, das travessas, avenidas, prédios, pessoas, chamadas de jornal, publicidade nas fachadas, algum bar, pelas festas nas casas dos casais conhecidos, telefonemas e responder meu e-mails, cavar vida, me deixar guiar tonta por caminhos de associações tão bem fechadas em seus universos. Agora sem norte mas tive um carrossel de letras que juntava pra formular um destino, imaginava, imaginava desatenta aos desmandos do que ia fora da minha inconseqüência, que eu exercitava e estimulava acreditando, acreditando como se eu tivesse direito, sonho, fé, gana, eu tinha necessidade de cavar a vida onde ela estivesse se escondendo. Se eu olhasse pela antiga janela com meus olhos de agora, não chegavam à rua, paravam ali detidos na grade, presos num detalhe dos ferros pintados com zarcão, logo eu, que era capaz de ver o que quisesse. Hoje, um medo vergonhoso, a covardia calada. Sinais já não me falam, desaprendi sua linguagem. Protejo minha desconfiança urbana de tudo que cochiche significados secretos. Olho a rua e quero pensar só nesse plano modesto.

Nem mesmo a lembrança do que foi me toca. A memória de tempestades não restaura o que está morto e seco. Pode haver, deve haver sim, não há? outra maneira de existir que não seja sentindo intensamente. Já vi quem tentasse e percebesse que é arremedo,
revivenda mal feita. Ser cínico, escolhendo o vácuo, não salva. Não existe sentir sem intensidade. Vivo, tudo que se sente é a pressão do desejo, pessoas, eventos - ou não é sentir, nem viver. Negar uma fração sequer dessa força pode viciar a percepção e cristalizar no peito o cerne oco da história de quem não procura mais nada pra contar. E aí quer dizer que você já era.










2.

Este muro é azul claro, dentro e fora da casinha, azul claro. Portas brancas, janelas baixas, cortinas de cetim e filó bege deixando vazar luz na sala desde as primeiras horas da manhã. À noite tem carro zunindo na rua paralela, espio os garotos jogando bola no quintal pequeno, driblando entre os canteiros. Minha avó chama, o jogo pára, entramos todos. Eles sentam nos banquinhos dispostos lado a lado na área de serviço, perto da máquina de lavar e do tanque de concreto, encaram a porta aberta pro altar subitamente quietos. Eu visto meu guarda-pó branco no banheiro de empregada, brigo por espaço com as roupas e as bolsas das mulheres que já estão na saleta, cantando, usando guarda-pós brancos. A ladeira já desceu, veio sentar nos bancos de madeira pintados de azul, mães e tias dos garotos, suas irmãs, um homem velho, todos eles puídos, cansados, cantam pra ajudar. Não cruzam os braços nem as pernas. Saio do banheiro e minha avó, ainda avó, me chama com a mão, tenho que ficar na saleta com as mulheres. Canto os pontos imaginando a pedreira e a mata onde a letra da música diz que vivem, e que logo estarão aqui, e eu vou acender charutos pra eles. O corpo de minha avó estremece no centro da roda embalado pelas palmas e a música que chamam. Estremece, gira e é amparada por duas mulheres, estremece e gira e não é mais avó. O caboclo chega e procura sentir com os pés descalços esse novo solo, passa os olhos pela sala tentando compreender o que vê, o corpo de minha avó agora está levemente curvado, pende para a esquerda, e o braço direito descansa o tempo todo atrás sobre o quadril. Fico de frente pra ele, tiro do bolso uma caixa de fósforos e um charuto, que lhe entrego e acendo obediente, as perguntas queimando dentro de mim. Aonde foi minha avó agora, se pela boca da minha vó um homem fala frases curtas numa língua truncada, e fuma, me pergunta entre baforadas como eu vou? Solta fumaça no meu rosto, nos meus ombros, me vira pra fazer o mesmo nas minhas costas, me vira de volta e olha como se não me visse. Risca uma cruz na minha testa com a Pemba branca. Agora eu tenho que ir pra perto da porta e esperar o momento de acender o próximo charuto. Todos os que sofreis e estais oprimidos, Ele vos aliviará.

Às onze já foi todo mundo pra casa. Eu na varanda com meu avô, gordo e moreno, triste. Ele não tem que descansar, descansando tem muito tempo, não sai nem mais pra um sol, uma cerveja. Não consertava mais os relógios, o liquidificador. Não acreditava mais que funcionariam se montasse de novo com esses parafusos sobrando do lado de fora. Brincamos de bar: vou na cozinha, apanho uma garrafa de água e dois copos, conversamos sobre o que nos propomos ver na calçada do boteco. À nossa frente, as plantas do quintal num escuro absoluto, o muro azul, insetos. Tá vendo esse cara magro sugado de barba rala sem camisa? Via o que queria, via pescador. O sol rasgando o mangue cheio de bichos e ele puxando o barco pra gente passear, as pernas finas enterradas até a cintura na lama, é Zé Luiz. Tem gente que ainda vive de peixe. Disse que os peixes todos se alimentam do mangue. Fiz uma história pro colégio com o Zé Luiz mas o tema era a família, não serviu. Paciência, a vida depende da maré. Vira o copo.

Meu avô bebia água resignado, sentindo o gosto da cerveja.

















3.

Prendo o cabelo num coque pra não impregnar tanto com fumaça. Ele vê, me chama no balcão. Quer meus cabelos soltos, quer meus sapatos altos e desconfortáveis. Pras canecas chegarem rápido em cada mesa é preciso mais que dois braços - tem que ter coxas de fora, tem que ter cabelo caindo nos ombros. Três mesas ainda vazias, mas em duas horas isso aqui vai ficar abarrotado de garoto novo da Zona Sul e coroa gringo gastando os tubos, álcool e papo em todos os sotaques e variáveis de inglês, português, alemão, italiano, é um encontro aberto de alienígenas, cabe até brasileiro, os que acham que reina aqui a convenção válida pras embaixadas, a ilusão sutil de que estamos em território estrangeiro. Alguns garotos daqui eu até entendo que gostem do lugar, por curiosidade, mas qual o álibi dos gringos, qual o objetivo de escapar da friaca tediosa natural de seu país pra América do Sul e se enfiar toda noite num bar, que eu acho que é exatamente o programa que esses gordos fazem em cidades pequenas atoladas em neve onde não acontece muito mais que campeonato de dardo? Vai ver que a graça é justamente essa. Ou só se aprende saudade longe, eles não têm saudade noutras línguas, aprendem ela aqui, e a matam como sede, com a cerveja que eu sirvo. Muitos estrangeiros acabam baixando nesse bar porque trabalham no Brasil há anos e às vezes precisam falar de novo inglês ou dialetos insondáveis encharcados no gosto amargo. “Às vezes”, em cockney carregado, quer dizer “toda noite”. Esses caras chegaram num estágio tão avançado de alcoolismo que não o encaram como vício ou doença, mas parte do corpo, um órgão a mais sem o qual não desempenham suas funções vitais. Não aparenta fazer mal pra saúde deles e faz bem pra minha bolsa.

Acendo o último cigarro na paz relativa das oito e meia. Trago o tempo e tusso um pigarro sem religião. Pretensioso, mas anoto no guardanapo, guardo debaixo de uma garrafa de Bailey´s. Hoje eu tenho a chance de sair mais cedo, vou ver um conjugado amanhã de manhã. Mas é só uma chance, uma possibilidade, que depende exclusivamente do fator sorte. Madrugada de sono ou de bandeja na mão, isso depende do americano sentado junto do balcão num banco estilo tô-na-selva que é um tronco de árvore partido. Se à meia-noite o homem de chapéu de feltro e rabo-de-cavalo grisalho conseguir fazer os dados marcarem seis e seis cada, estou liberada. Essa foi a proposta do dono. Bate 0h e Tom decide minha noite com um sete, eu fico. Com vontade de jogar uma garrafa no espelho atrás do balcão e justificar de uma vez a sorte, nos cacos os fatos iam ficar de uma clareza descomunal. Há Um horrível cacófato nos fatos dos cacos, mas.

O bar da Atlântica é do homem de corpo largo, cara larga, sorriso largo socado atrás do balcão. Nasceu em São Paulo há quarenta e dois anos, dos quais 35 passou no Rio, onde desvirtua um pouco a atividade que sua família desempenha há gerações no Bexiga: em vez de massa, vende cerveja, cerveja pra caralho. Sirvo cerveja – por enquanto, mais que eu agüento beber, menos que a quantidade consumida por ele numa noite. Vai ver que até às 4h da manhã todo o bar já bebeu mais que ele, mas é uma corrida acirrada. E o outro barman também enche a cara. Eu e o --- estamos autorizados a entornar uma boa quantidade de cerveja toda noite, cerca de oito canecas por cabeça, desde que a gente fique de olho nas mesas; brasileiro, gringo, nesse ponto é tudo igual: tem uns que, se der mole, saem sem pagar. Tirando os que fregueses antigos, tem que desconfiar de todo mundo. Cerveja importada aqui vende melhor, é mais cara que a nossa, mas no ritmo que a gente vai mandando não sei como pode dar lucro. São os gringos assíduos, tipo o Tom, que pagam a vida do bar. Uma caneca da sua cerveja importada preferida custa quatro vezes mais que a nacional e ainda sai barato pra eles. Tudo no Brasil é barato pra quem tem dinheiro de verdade. Peguei o trabalho aqui não faz um mês, já dá pra alugar um cubículo juntando gorjeta com o fixo das semanas.

Tom, fios grisalhos escapando pelas abas do chapéu, olhos azuis pastando pelo bar tranqüilamente do copo pra minha camiseta, da lâmpada fraca pro balcão. A mancha vermelha no braço parece uma queimadura, é uma queimadura, no início eu achava que ele sempre aparecia com uma porque trabalha na cozinha de um hotel da Avenida Atlântica, chapéu de mestre-cuca em vez desse de palha equilibrado no topo de um metro e noventa de altura. Loirra, querro ma-is Machadou deh Assis. Tem português suficiente pra entender Dom Casmurro mas a pronúncia, como era de se esperar, é uma bosta. Fala arrastada que nem fita cassete velha enrolando no aparelho de som. Emprestei uns livros, ele traz pedaços de salmão grelhado do almoço e o que mais tiver limpo em cima da pia no fim da tarde. Diz que já cozinhou pra rainha da Inglaterra, no bullshit, antes do hotel. Penso nisso quando eu como, mastigo me divertindo só de imaginar as remotas e improváveis conexões de Tom com a nobreza; janto de pé em cinco minutos o que ele me trouxe hoje, veio também arroz com brócolis. Não consigo parar de olhar pra queimadura no braço de Tom, é uma circunferência pequena na carne mas dessa vez rasgou fundo. E é uma besteira, é o jogo de viciado mais besta que inventaram depois daquele do Burroughs e eles às vezes chegam a fazer até sóbrios. O único jogo desses que eu me meto a fazer é o dos dados. Se der doze, eu saio. Sempre dá outra coisa qualquer que nem passa perto de doze, deve ter alguma treta nesses dados. O outro jogo do Tom é encostar o antebraço no antebraço de outra pessoa e colocar um cigarro aceso entre os dois. Quem amarelar primeiro, paga a rodada. Tom já se considera um especialista em literatura brasileira, tanto que largou no meio a leitura da versão americana de Quincas Borba porque achou que a tradução não foi fiel ao estilo do autor. Ele reclama que o braço do outro freguês era mais cabeludo por isso a pele demorou mais a queimar que a sua. Paga a rodada sem fazer cara feia porque Tom é um homem bem-humorado, mas vai ter próxima vez, sempre tem.

Domando cavalos, driblando as mesas, agora todas ocupadas. Tentei pensar onde foi que deixei de querer, ou se deixei de querer. É difícil arrancar tudo, são palavras espremidas de um pensamento vagaroso.

- Eu tinha medo de você. – O barman me diz agora rindo, mas o que diz é sério. Escuto muito isso. E cada vez parece mais medo. E eu sempre querendo dizer uma coisa e acabo dizendo o seu contrário, que é a verdade, ou nada. Olho muito sem dizer nada esses dias, mas não é que não goste deles. Basta meia hora encostada nesse balcão pra alguém começar a contar sua vida como se estivesse num consultório ou coisa assim, mas eu não falo nada de mim pra eles. Senão volto a ser o que eu era, reavivo um modo de vida extinto. O engano é achar que todos sabem; cada ato, mesmo um ato repetido, é sempre inédito, seja entre diferentes pessoas ou as mesmas combinações de gente. Queria ser totalmente sincera um dia, fazer uma promessa: se eu entender novamente o sentido que perdi, que eu diga tudo.



Não gostava das coisas ditas com silêncios. Achava egoísmo guardar as palavras na cabeça e apresentar a cara mais lavada, como se eu só pensasse no meu trabalho ou nas coisas que precisava comprar. Pra que tudo não se resumisse às ordens grudadas na geladeira com ímã, de minha parte eu teria lambido as feridas do outro, feito coisas bonitas e santas como levar conforto onde o conforto é apenas tela flat e poltrona reclinável. Minha caridade agora é inversa e remunerada: não falo muito, escuto; e boto cerveja quando me pedem.


4.

Só nossa equivocada noção de tempo pode conferir ao que nunca aconteceu de verdade a qualidade de uma fronteira intransponível, tão real quanto a tela do computador na minha frente. Sob a superfície desse tempo inventado, recriado, tenho um sonho recorrente – vivo nesse sonho - fora do tempo, dentro do mundo.

Há cinco anos, eu nunca sabia se por trás do vidro espelhado do prédio da Avenida Rio Branco era fim da tarde ou já altas horas.

Eu apurava, eu, entrevistava, escrevia, programava o HTML, fotografava os eventos com a minha própria câmera digital, manipulava as imagens, publicava as notícias e as matérias e as imagens no site da empresa. Respondia aos e-mails e telefonemas dos leitores satisfeitos e insatisfeitos com o serviço, organizava promoções com produtos que nossos clientes divulgavam, respondia e-mails e telefonemas de participantes contentes ou descontentes com os brindes, a maioria descontentes, exigindo isso e aquilo, ameaçando procurar o diretor da empresa, rogando pragas, bufando e babando.

Na primeira semana no emprego, fui treinada por um espanhol barbudo a prestar atenção, ao mesmo tempo, em cada uma das atividades relacionadas a ser assessora de imprensa da multinacional sovina que não queria pagar mais de um profissional pra fazer o serviço de três. Numa salinha pouco refrigerada, ele me ensinou os macetes do emprego e foi comprar cigarros em Porto Rico ou coisa assim. Às vezes mandava um e-mail reclamando de algum aspecto do trabalho que considerava mal e porcamente executado ou dando as coordenadas pra que eu puxasse o saco desse ou daquele cliente. Meu cheque era depositado mensalmente por alguma entidade desconhecida e tudo que eu tinha que fazer era assinar um papel e mandar por fax para... Porto Rico? Pouco me interessava.

Agora me interesso menos ainda pelo que vai dentro dos distantes prédios do Centro da Cidade, o que aquelas pessoas pensam do lado de dentro dos janelões de vidro fumê são coisas muito tristes. Um vez circulou no escritório um e-mail intitulado "Você vai ser demitido". Foi o único spam que já li na minha vida. A mensagem dizia que, um dia, da copeira ao Superintendente Superimportante de Comunicações Intergalácticas, todo mundo vai pra rua. E em qualquer empresa. Portanto, é preciso sugar o quanto antes tudo que você puder, arrancar da empresa cada vantagem que puder oferecer. Você tem telefone na sua mesa? Faça lo-ongas ligações interestaduais, internacionais, dê aquele alô demorado pra um amigo que foi morar longe. Pegue muitos táxis, coma em bons restaurantes, durma com a consciência limpa em hotéis caros e inclua as notas de tudo entre as despesas de suas viagens de trabalho. É o mínimo que você pode fazer; afinal, eles estão chupando o seu sangue.

Eu me demiti depois de anos fingindo que não percebia a mão da empresa por baixo da minha saia. Apesar de agora eu não dispor de um puto sequer no bolso nem perspectivas de arranjar o dinheiro fixo mensal que eles espirravam na minha conta bancária, a parte do meu cérebro que ainda pensa está aliviada. Prefiro trabalhar num bar que cheira a peido de cebola envelhecido a ver aquela gente outra vez.

Tem esse irlandês que passou seis meses em Copacabana enchendo a cara e comendo mulheres gostosíssimas com dinheiro que fez como fiscal de minas no Zimbawe. Christy "Twodogs" levou um pé da namorada e largou o caminhão na Irlanda pra coordenar trabalhos (forçados, sei lá) nessas minas. Ele diz que a fome do brasileiro jogado na rua em Copacabana, pedindo um dinheirinho a quem sai do banco, é uma fome ridícula perto do que viu por lá, onde tinha vergonha de comer e beber com as ruas lotadas de cadáveres natimortos e zumbis esqueléticos. Um verdadeiro filme de terror. Evoquei o Nordeste mas pra ele não serviu. "Nunca mais quero ver aqueles rostos novamente, dá vergonha de estar vivo", dizia, entre um pint e outro de cerveja escura e cremosa a R$ 19. Ele definitivamente precisava de seis meses de putaria no Brasil pra se reafirmar como ser humano: estava ficando compassivo demais, deprimido demais, preocupado demais diante daquele desfile de restos de gente.

Christy tinha 52 anos e dois brincos de argola dourados e grossos na orelha esquerda. Parecia um traveco equivocado de bigode. Eu fui idiota de perguntar pra quê os brincos. Ele levantou da mesa e foi até o mapa da Irlanda, que fica bem do lado do espelho com a marca GUINESS pintada em cima. Eu com dor nas pernas e nas costas de tanto andar pra cima e pra baixo com trezentas canecas por hora e agora vinha um sermão. Por causa de dois brincos idiotas. Fui até o mapa com o coroa e aí ele começou a falar muito empolgado dos gipsies da Irlanda, que não são bem assim uns ciganos lendo a mão dosotro na rua ou mudando de acampamento pra acampamento, são um dos grupos que se encheu da Inglaterra e dos ingleses (que, segundo ele, têm dentes mais podres que os irlandeses mas eu não sei não) e explodiu um bocado de prédio e carro na parte da tomada da Irlanda. Do jeito que o coroa falava da Inglaterra, dava pra ter raiva até dos Beatles.

"Fiz um monte de merda anos atrás, coisa que a gente faz quando é novo. Mas alguém tinha que se mexer, não é?" No braço esquerdo, o Christy tinha tatuado o símbolo do renascimento da Irlanda forte, uma fênix. No Brasil, fez outra fênix no braço direito, que aí ele dizia que era o símbolo do seu renascimento. Ele queria casar comigo e me levar pra uma dessas encantadoras minas de trabalho escravo. Eu cheguei a concordar quando ele fez a proposta, mas assim que fiquei sóbria e entendi que ele não estava brincando nem me oferecendo só um jeito de obter dupla nacionalidade, pulei fora. Ele ficou deprimido e passou a andar atrás de mim que nem um bicho na rua todo dia depois do trabalho. Tive que parar de passar pela porta dos bares onde eu sabia que ele ficava, senão ganhava companhia pra qualquer coisinha besta que eu quisesse fazer, fosse um passeio pela praia ou um cinema ou procurar outro emprego. Depois de quase um mês nessa história, ele desistiu e foi embora. Acabei tirando folga do bar na noite da despedida dele. Fiz de propósito, mas porque eu realmente não acreditava que ele fosse embora.
O dois cachorros bebeu muito nesse bar antes de partir pra mais uma temporada de trabalho lá fora, onde pagam bem. Christy nunca é demitido, Christy sai do emprego e vem pro Brasil comer mulatas e bolinho de aipim. Nossos Christies nunca conseguirão ir à Irlanda beber Guiness com o dinheiro que conseguem transportando laticínios num caminhão que nem é deles. Melhor pra eles, aliás.

A maioria dos gringos gastam pilhas de notas graúdas em passagens de avião, hotéis, passeios organizados por trambiqueiros em agências de viagens etc. e tudo isso só pra ver as mesmas coisas que a gente mais FUDIDA tem aqui ao alcance de um ônibus. Às vezes nem isso: basta descer a Rocinha, a Nova York das favelas, e cair direto numa puta praia aberta. Só os visitantes endinheirados têm direito às cadeiras reclináveis de plástico azuis e brancas do Copacabana Palace ou do Marina mas o que há de errado com as que são alugadas a dois reais pelos barraqueiros do Leme a São Conrado? Pagam muito caro pelo que temos de graça, tendo nós um emprego fixo ou bicos ou nada além de tempo pra vagabundear.

Eu simpatizo mais com os gringos pedreiros e caminhoneiros e vigilantes com bom coração em minas e membros de obscuras facções do IRA do que sou capaz de tolerar os esbanjadores dos palaces da orla. Eu admito que os gringos mais ferrados que vêm pra cá só falam um monte de merda - não são Joyce, não são gênios. Mas isso é porque vivem bêbados e são mesmo mais simples que um botão. Mas têm todo o direito de desperdiçar aqui o dinheiro que fazem, passando os dias na praia e as noites em bares que reproduzem a atmosfera de sua terra natal, pubs ingleses e irlandeses que são sucesso na noite da Zona Sul do Rio de Janeiro. Eles estão cagando e andando pra qualquer traço da nossa cultura que não seja bem curvo, rechonchudo e rebolativo. Alguns deles vivem em Manchester e nunca ouviram falar no Hacienda nem na "cena de Manchester", nem naquele filme que os modernos brasileiros ficaram se borrando nas filas em portas de cinema pra assistir num festival qualquer; eles não vão a shows, não compram CDs, não sabem quem é o novo Nick Hornby nem querem saber. O que você esperava, senão isso mesmo? Sangue europeu, e daí.

Mas o que dizer de homens e mulheres com diplomas, MBAs, ternos, coques, óculos mais caros que o aluguel do meu conjugado, laptops, mais da metade da população do Centro da Cidade - e agora eu falo do Brasil e do Rio de Janeiro e também de outras cidades brasileiras que não se auto-proclamam maravilhosas - circulando alucinados pelos arranha-céus e muito especificamente pelo 19o. andar daquele monstro de fachada de espelho, todos congelando o cu no frio do ar-refrigerado máximo que protege os computadores mas transforma o sangue em blocos de gelo, e aí o seu ranger de dentes é a única coisa capaz de interromper o fluxo ininterrupto de MERDA que jorra pelas suas bocas sisudas. Falam tanta baboseira sobre pessoas, sobre o que chamam de mercado, a vida, os filhos, e a própria empresa, essa empresa despirocada, que eu achei que estavam todos bêbados no meu primeiro dia no escritório. Mas eles não têm esse álibi. Estão sóbrios e o máximo que aquelas cabecinhas produzem são seqüências de números e ações de marketing ineficazes que não chegam a um terço da atividade mental de um irlandês semi-analfabeto e severamente alcoolizado.

Todos as manhãs eu dizia bom dia pras chefias, que não respondiam senão por um meneio sem qualquer expressão na cara ou uma olhada rápida pra desaprovar o que eu vestia. Aqui é diferente. Toda a falsa impressão de cordialidade entre patrão e empregados é dispensada como supérflua desde as primeiras horas da noite. E justamente por não haver necessidade de manter as aparências, acabamos nos tratando bem espontaneamente, isto é, às vezes, quando sentimos vontade, e até nos divertimos quando não estamos estressados demais com o trabalho. É claro que eu não achei bacana quando ouvi as primeiras - e únicas – instruções pra trabalhar no lugar:

"Se você vê uma barata ou um rato, você n?o grita. Você mata. A caixa d´água está vazia há meses. O bar é abastecido por um caminhão pipa. Geralmente, a água dura até as nove horas. Se um cliente perguntar por que a água acabou no banheiro, você diz que tivemos um probleminha com a bomba hoje e que amanhã será resolvido. Na primeira semana, coloque todas as gorjetas na caixa coletiva. Depois da quarta semana, embolse as mais altas mas não na frente das outras meninas. Todas podem fazer a mesma coisa, desde que não arranjem confusão umas com as outras. Alguma dúvida?"

Insetos, ratos, falta d´água... parece tudo tão fácil. Ah, e os clientes inconvenientes... nenhum deles é tão repugnante quanto o Sub-Gerente do Departamento de Marketing da Companhia de Internerd Gastrointestinal. Desse eu me lembro bem porque contei aos meus amigos sobre ele na primeira semana de trabalho por lá. Sua estupidez era tão sólida quanto uma mesa ou um peso de papel. Só me cumprimentava quando eu tava de saia ou vestido. Dava uma manjada nojenta e aí falava com aquele bafo de cocô, como é que tá? Logo nas primeiras semanas, no entanto, descobri que havia outros naquele cemitério vertical melhor ajustados, como eu: um cara que sumia durante o almoço e parte da tarde pra dormir no estacionamento com as pernas pra fora do carro e um trio de garotas do SAC que viviam se agarrando pelos corredores mas seus superiores achavam que aquilo tudo era só uma puta amizade forte ducaralho. E de certa forma era. Eu até que sinto falta das meninas.


Mesmo com tanto material suspeito bem debaixo de seus olhos, a gerente decidiu implicar foi comigo. Perguntou às moças se não me achavam meio esquisita. Esquisita era seu eufemismo pra homossexual. Elas me contaram isso às gargalhadas num almoço em que decidimos pular a parte da comida e ficamos só na cerveja. A gerente achava que tatuagem em mulher era um indício de homossexualidade. Eu tenho algumas (nenhuma é uma fênix), portanto, eu deveria gostar de boceta. Se eu fosse um homem gay tatuado, teria que gostar de boceta também. Claro que isso só faz sentido na cabeça duma mulher muito da porca. Uma vez, o banheiro feminino da empresa passou um dia inteiro fechado e tivemos que usar o de um restaurante vizinho porque a pomposa figura vestida em linho e lenços tinha jogado um absorvente gigantesco e imundo dentro da privada. Tenho a dizer a favor da minha atual clientela que as irlandesinhas bêbadas e cheiradas como loucas limitam-se a mijar na tampa da privada mas nunca entopem de propósito o banheiro que vão ter que usar a noite toda. Principalmente quando falta água. Elas sempre tomam o imenso cuidado de não jogar nada dentro do vaso que possa acumular com seu material pra exportação.

Eu não durmo mais à noite. Pego às 18h e vou até as 5h da manhã, bandejas, copos, canecas, garrafas, tips, tits e inglês afiado. Em um ano, quem sabe, junto dinheiro suficiente e faço uma visita ao Christy e suas duas tatuagens horrorosas de fênix.


4.

O trompete à frente de tudo, da voz e da cantora e do pianista, cada nota soprada me lembra de um grito que podia dar. Eu podia tomar banho agora, com o ralo tampado pra fazer uma banheira que me cobre só até o meio das costas, emudecer amortecida pelas bolhas na água ou cantar junto com o disco um tempo, até decidir que estava bem limpa, bem quente, que podia vestir o jeans, o top, um casaco amarrado na cintura, tênis pra andar até Ipanema, tomar um café na livraria, jornais, e voltar, lá pelas tantas um vento mais gelado de fim de julho, um refrigerante no quiosque, comer a refeição do dia, o resto é café, refrigerante, cerveja, vinho, ver gente, cruzar com um conhecido que ia perguntar desses dias e aí eu não ia saber o que dizer. Por isso não desci ainda, tenho medo de encontrar alguém, eu ia tentar fugir, eu ia ficar sem palavras, ia receber um recado dele, se não recebesse ia ficar pensando no recado que não recebi, ia mandar sinais pela pessoa conhecida, ia querer saber dos outros, ia acabar bebendo com todo mundo mais tarde, iam querer saber o que aconteceu, e eu não sei o que aconteceu. Melhor não descer. Agora não porque me passou vagamente a idéia de que vou encontrar um conhecido na praia. Pela velocidade com que veio o pensamento de que eu encontraria essa pessoa, qualquer pessoa que pudesse falar comigo sobre pouco tempo atrás, essa impressão rápida de que a encontraria é quase a certeza de que irei encontra-la. Preciso me deter um pouco mais nesse pensamento para espantar a possibilidade de a intuição se concretizar, destruir a sutileza da insinuação, que é o que faz as coisas sussurradas acontecerem, não se ater às insinuações de possibilidades.

AS IMAGINAÇÕES DISFARÇADAS, UM BREVE HOW TO

Começando assim o manual:

- O que você fez no fim-de-semana?

- Nada demais – responde uma pessoa qualquer que envolvo neste exemplo para um manual simplificado sobre as intuições, pro caso de algum leitor desatento gostar de saber como evitar que se tornem fatos. Os fatos nos cacos ficam mais coesos. Nada, pousei tigres (ou qualquer resposta desse tipo; a resposta aqui não tem a menor importância, o que importa é que foi feita a pergunta) – havíamos parado aí, a pessoa do exemplo. Ela não podia revelar a verdade, é claro. Havia passado a noite fazendo o que tem que ser feito nesses casos, ou seja, nada além de imaginar disfarçadamente o que desejava que fosse feito. Assim: quando se despediram no encontro antes desse diálogo, ela havia desejado muito que o outro perguntasse na semana seguinte o que tinha feito durante o fim-de-semana. Ora, pra conseguir que ele lhe dirigisse a expressão genuína de tal interesse, o procedimento era apenas um: deveria imaginar, muito suavemente, que lhe era feita a pergunta, e feita, especificamente, por ele. Mas não se pode imaginar de uma maneira agressiva, ruidosa (ainda que o ruído ecoe apenas dentro da cabeça de quem imagina) quando o objetivo da imaginação é a concretização do fato imaginado. É preciso, portanto, imaginar disfarçadamente, sem fixar o trabalho mental de maneira obstinada e clara sobre o evento imaginado. A imaginação disfarçada, ou disfarçata ,deve surgir espontaneamente, num átimo de segundo, e desaparecer entre outros pensamentos corriqueiros sem que a ela se dê qualquer importância além de uma breve constatação – é essencial o termo constatação – é preciso constatar o evento imaginado disfarçadamente como fato consumado; ou que é fato corriqueiro e insignificante co que se pode contar garantidamente, como contamos com o jornal na porta de casa todos os dias, salvo aqueles que não assinam qualquer periódico e têm mesmo o hábito de repudiar a imprensa. Sendo assim, quando a pessoa do exemplo percebeu que sentiria imenso prazer em que o outro do exemplo se interessasse pelo que ela tinha feito no fim-de-semana, seguiu imediatamente pro aeroporto Santos Dumont e comprou uma passagem pra São Paulo, onde passou o resto do fim-de-semana obliterando aquele instante breve em que desejou ouvir a pergunta. Não é fácil afundar a memória e esperar (sem esperar) que ela volte à tona quando menos se espera, travestida de fato concretizado no futuro. É um processo realmente complicado, pelo qual eu poderia pegar uma vida inteira de camisa-de-força se os loucos hoje não andassem livres. Eu imaginei disfarçadamente que ia te largar e, um dia, realmente. O problema é que o que imaginamos nem sempre é o que desejamos que aconteça.

É preciso ter imenso cuidado com a imaginação porque hoje não se cuida mais dos loucos, a lei permite que vivam soltos por aí. Se alguém enlouquece por causa da imaginação, precisa internar-se por conta própria. Num conjugado, noutra vida, pobres paranóicos desatados porque a rotina conhecida não comporta mais suas idéias. A definição de rotina també pode ser obtida através de um exemplo. Perceba:

COMO TERMINAM AS VISITAS

Se for numa sexta-feira ou sábado, vocês estarão lá pelas três da manhã sentados em torno de uma mesinha com recortes de queijo (quadrados) e salsichas temperadas (algo cilíndricas). Há copos vazios mas já se foi a disposição de novamente enche-los. Os encostos sob os copos trazem os rostos de Jane Mansfield, Rita Hayworth, Marlon Brando, Groucho Marx manchados de vinho, cerveja e refrigerante. Não lembram sequer o motivo da visita. Geralmente, é sem motivo algum que acontecem. Olhe disfarçadamente seu (sua) acompanhante enquanto a dona da casa conta a trigésima história sobre bichos, gatos ou cachorros, ou ainda uma incrível girafa do Discovery Channel, ou seu filho no colégio ou vizinho inconveniente. A essa altura, tudo parecem histórias de bichos, são todos quadrúpedes. Olhe para seu (sua) acompanhante e perceba um esgar que logo se transforma num frenético revirar de órbitas e então um imenso bocejo. Seu amor tem várias obturações e mostra todas quando quer ir embora. Concentre-se – não é difícil desvencilhar-se das palavras ruminadas na sala, são como um perfeito mantra bovino hmm hmm hmm – inicie a comunicação telepática com o seu benzinho, que pode se chamar Bem-Proporcionado ou Svetlana:

- Svetlana para Bem-Proporcionado (ou vice-versa): gostaria que existisse um Deus do qual eu pudesse cobrar prova de Sua existência agora através do envio de um raio certeiro que fulminasse a anfitriã caso ela emende outro assunto.

No meio de mas frase que continha qualquer coisa de “... mamou até os oito anos...”, seu (sua) acompanhante simplesmente bate com as mãos espalmadas sobre os joelhos e se levanta dizendo “vambora?”, o que a anfitriã ignora e continua “...por isso fiz o silicone, oito anos puxando aqueles peitos com a boca...” e você corta confirmando “tá na hora” e beija o rosto da anfitriã enquanto ela ainda fala sobre a amamentação e, lá do fim do corredor, já quase alcançando a porta do elevador, ainda se ouve sobre aquela vez em que o menino perdeu um dente no colégio e mobilizou todo o corpo docente para encontra-lo.

Quase ninguém mais se casa no papel. Quase ninguém mais se casa e ponto, a coisa é essa, a maioria das pessoas se juntam e se separam sem o embaraço dos cartórios, da igreja; de testemunhas, só os amigos que freqüentam o apartamento e o bar, o que deve fazer tudo mais fácil quando acaba, pelo menos no quesito burocracia. Dar menos satisfação a menos gente que os cento-e-poucos convidados habituais dos casórios de outros tempos. Não tem padre nem prestações pendentes do bufê que façam doer a consciência de um casal que decide pela separação precoce. Mas eu continuo neurótica: se eu encontrar um conhecido, ele vai querer saber os motivos, e eu vou dizer que enlouqueci, que acredito em sinais, que é precisamente isso que faz de mim uma doida, que eu não servia pra ele, que sou mística – há tipos de esquizofrênicos co tendência exacerbada ao misticismo, eu podia falar sério sobre imaginações disfarçadas e sua influencia nos fatos, como se eu acreditasse nisso, e ele levaria a coisa toda a um analista que diagnosticaria “esquizofrênica” com algumas reservas, “olhas, eu não posso afirmar com certeza se não acompanho pessoalmente o caso, mas o fato é que exista pacientes que...” e eu ficaria livre de me explicar porque é sempre mais fácil ser doido que mau-caráter nesse mundo e eu, definitivamente, ultimamente, tenho desconfiado que sou uma mulher sem caráter, e só isso, minhas grandes idéias, meu tédio, não é talento nem loucura, é só mau-caratismo, sem-vergonhice, niilismo, cretinice, e que provavelmente era isso que estava escrito no resto da sua carta que eu não li.










vertendo sonho em papel amassado

Cada tremor era como uma queda da qual eu nunca poderia me erguer e, no entanto, passando a me atirar com freqüência, vi que me não só me levantava como tornava a me jogar.

Numa cama estreita, insone, sóbria, chocando meu tédio... por que não lá fora? Porque aqui eu não erro, aqui tenho todas as qualidades. Admiro a pintura que descasca no teto como se fosse a capela cistina, o resto do fumo no cinzeiro dá um fino mal enrolado mas não me dá sono.



Às 23h a portinhola de aço da lixeira bate contra o trinco. É a hora de o meu vizinho levar o lixo pra fora. Nunca estipulado em conversa alguma, respeito seu relógio de neurose. Prefere não cruzar com ninguém enquanto faz isso. Deu pra notar quando topei com ele no corredor, cheio de sacos plásticos na mão. Foi na mesma manhã que o ouvi urrar que gozava numa mulher que gritava sem palavras, um som seco estalado na garganta, acompanhado das batidas da cama contra a parede, em ritmo perfeito.

Ao me ver no corredor depois de sua magnífica foda, abaixou imediatamente a cabeça, atirou as sacolas pelo buraco na parede e voltou apressado pro seu cubículo como um rato. Desde esse dia que só joga o lixo fora às 23h, tenho certeza que primeiro espreita por uma brecha de porta aberta pra ter certeza de que não tem ninguém ali. Se ele ouve bater uma porta no seu andar e o som do elevador movimentando por correntes de 50 anos, ele espera até não escutar mais nada pra sair, despejar o lixo e retornar à toca.

O que ele não sabe é que não adianta se esconder, que é tudo é uma lixeira enorme e cavamos nela investigando os restos uns dos outros. Eu quero ver seu lixo, antes mesmo de me livrar do que trouxe em caixas de papelão pra minha internação voluntária. Lixo no meu quarto pequeno, nado na onipresença dessas caixas, ignoro a baderna, como sempre fiz, e tento circular, respirar e pensar aqui dentro. Todos os prédios são caixas de papelão, eu olho pelas frestas da minha caixa pros buracos nas caixas de papelão vizinhas e vejo os ratinhos lá dentro brincando de circular nas mesmas idéias uns dos outros na frente do tubo de imagens e é satisfatório imaginar que eu não sou a única incapaz de ter um pensamento original.