5.6.03

"Com esse eu casava", podia dizer ou pensar, se fosse o caso de viver num século em que ainda se faz isso - casar, falar ou

pensar em casar. Matrimônio já foi a norma vigentes; hoje, ficar na defensiva é o padrão pra quem não tem padrão, ou seja, a

maioria que se divide entre apatia e hiperatividade. Em qualquer dos dois modos, a norma vigente é a ansiedade. A senhora de

quem eu falo - e só de falar já me lembro do seu jeito nervoso de mexer os cabelos e da mania de retorcer os clips de metal

nas reuniões - enquadrava-se na abrangente categoria das pessoas divididas, posso até confirmar pra vocês, "um pouco

esquizofrenicazinha, coitada". Ela se dizia de poucas pessoas, de um ou outro caso a que dava mais importância que devia, e

normalmente tinha uma puta urgência de viver. Se estava dentro, queria ir pra fora, se estava fora, queria ficar só do lado

de dentro. Os dias apáticos tornavam esse aspecto ainda mais interessante de ser observado porque, uma vez abatida e

desesperançada, sua agonia tornava-se ainda mais evidente. Confessava-se: com amigos, com vizinhos, com moleques de 13 anos

em chats, com o chefe. "Eu preciso fazer alguma coisa!" O quê, sobre o quê - não sabia, não tinha idéia e essa era parte de

sua agonia. Queria dar forma ao mundo, coordenar o caos, guiar seu fluxo, evitar catástrofes, e descansar em resultados

satisfatórios. Queria ter controle sobre as coisas que não podem ser controladas.

Num movimento automático, tenso, vestiu a camisa branca que trazia como saída-de-praia. Mas não ia embora, não podia ir.

Escondeu busto murcho e estômago projetado com a prudêcia não de uma natureza excessivamente pudica e, portanto, deslocada no

tempo, mas por reconhecer constrangida-pesarosa (derrota) a defasagem de seu corpo em relação aos das outras mulheres que

tomavam sol ali pelo Posto Nove. Era o que a língua portuguesa, essa bela criatura em eterna transformação sobre a qual os

dicionários e filólogos não têm qualquer domínio, era, enfim, o que a língua havia denominado como baranga - fenômeno

universal e atemporal que recebera essa nova alcunha no Brasil entre o final do século XX e início do XXI.

Não, não dava mais pra ir embora. Tinha achado um cara, um rosto, um estranho - vai ver ele carregava jeitos de outros

amores, tatuagens parecidas, curvas de músculos que ela conhecia do passado - precisava ficar e descobrir o que era. Por que

prestar atenção nele, naquele cara específico, quando a praia estava cheia de infinitas possibilidades, várias delas até

menos díspares, mais adequadas aos seus trin-ta-e-cin-co anos? A pele e a turma em volta dele denunciavam um final de

adolescência; podia ser que 20, podia ser que 18. E aí a balzacona, a véia não podia nem rir sozinha tirando o cu da reta "eu

podia ser mãe dele" porque nem isso: ela já tomava pílula quando ele nasceu! Escândalo, saída-de-praia, benzadeus esse

menino. Ficou olhando.

Ele jogou frescobol, apertou um senhor baseado, fumou, mergulhou, voltou se sacudindo como cachorro, levantou um dedo pra

pedir Skol, dormiu de bruços, virou de lado, acordou, bebeu outra Skol. Foi interrompido pelo celular em todas as etapas

enumeradas. Até que a galera dele finalmente deu sinais de que ia levantar acampamento o psujeito ficou de pé com as quatro

tanajuras sem celulites (uma incrível vantagem sobre toda a praia aquelas quatro vagabundas) e o magrelo espinhento de cabeça

raspada que parecia ser disputado por três delas. Mas despediu-se. Voltou a se sentar na areia assim que o grupo deu as

costas pro mar.

Ela precisava ficar ainda mais e ver que ele era daqueles neo-hippies aloprados que batiam palmas pro pôr-do-sol; iria então

pra casa tranqüila, guardando menos rancores por conta das suas irreparáveis diferenças. Mas o rapaz, o guri, o MOLEQUE puxou

da bolsa de pano um caderno e começou a rabiscar meio furioso uma folha atrás da outra. Parecia que tava bêbado. O clap-clap

pro sol começou às sete e ele não largou a caneta pra aplaudir. "Deve ser lição de casa", ela ficou achando, ficou cacucando

ndono fundo da memória pra lembrar como era fazer dever de casa com a cabeça numa coisa hipotética, que nunca tinha visto

ainda - sabotando com material de seu próprio pocinho fundo de cinismo o interesse que tinha por aquelas folhas de papel. A

auto-sabotagem é uma arma fina e feminina, sacada sempre que a imunidade da mulher defasada é abalada por algo desconhecido e

embasbacante de tão bonito. Porque ele era

bonito. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto e nem devia ser tão belo assim: esses eram os piores casos. Achar

perfeito o que não é perfeito, reconhecer que um nariz é de batata, que um par de orelhas são de abano - não que a figura

dele combinasse tais exatas características - e ainda assim ser capaz de afirmar beleza no erro... lembrou My Funny

Valentine
, doce, cômico, engraçado, o rosto menos que grego e que era assim que as coisas começavam, mesmo estando na

cara que nada ia acontecer. E arrematou a sabotagem lembrando que, se standards já eram antigos quando ela tomava

pílula e ele nascia, hoje era ridículo lembrar que eles existem.

Enquanto o guri, o MOLEQUE nascia, ela comprava entrada pra ver o AC/DC no Rock In Rio I (UM!). Enquanto o rebento vinha ao

mundo, ela perdia a virgindade com um amigo do irmão no estacionamento das Casas da Banha (rede de supermercados extinta).

Enquanto uma incauta expelia o resultado dum espirro de pica gosmento que, ninguém apostaria, ia se tornar a coisa mais

bonita que a COROA já tinha visto, a coroa tinha uns 15 anos e dava mais que chuchu na serra. Naquela época, aliás, a

expressão "dava mais que chuchu na serra" era nova. Búzios não estava tão cheia de argentinos, Ipanema não tinha livraria com

café 24h, o tráfico limitava-se a vender as paradinhas sem grandes conflitos e era isso aí. "Roque Santeiro" era estréia, não

reprise, e Michael Jackson vendia disco. É, disco, VINIL, que CD só chegou depois. Era melhor nem pensar.

E, no entanto, desde que bateu os olhos no moreno, seus dentes não cabiam mais dentro da boca. Só fazia rir. E tinha medo que

aquilo acentuasse os vincos que ressentia no rosto, que externasse o óbvio: que era uma velha, uma velha cheia de graça pra

cima dum garotinho. Um resto de sol mirava firme na linha dos seus olhos e isso fazia com que risse mais que o riso

espontâneo - espremia um pouquinho a vista pra evitar os últimos raios alaranjados e ver o menino. O menino tinha se

levantado e, agora, virado pra ela, continuava a rabiscar. Não podia ser uma coisa dessas; devia estar esperando o cara da

Skol virar também pra pedir mais uma. Não podia ser que andava na direção dela. Apertou mais os olhos e viu, sem controle,

sem querer, veias debaixo do short de tac-tel - viu imaginando, dentro dos próprios olhos ainda pintados de resto de sol,

porque quase não podia enxergar fora da própria cabeça naquele momento. Porque era crucial: a beleza caminhava decidida a

encontrá-la. E era um farrapo, ela, um farrapinho de trin-ta-e-cin-co anos, AC/DC, Roque Santeiro, vinil. Terrível! Ajoelhou

do lado dela.

Se pudesse ter fixado os olhos em qualquer ponto, sem o nervosismo que a fazia piscar como um estrobo descoordenado, teria

definido à sua frente as coxas retesadas, um risco fundo em cada lateral, um peito com pêlos certos de uma cor não definida

entre o castanho e o loiro, tatuagens iguais às de outros tempos talvez. Não viu nada disso. Ouviu:

- Oiii. Desculpa eu ficar olhando, mas é que.
- Oi! (num fode)
- Tudo bem? É que eu queria te desenhar.

Num fode.

- Por quê?...////...///?!...///
- Desculpa, eu sou meio cara-de-pau. Mas tenho que ser porque às vezes eu vejo alguém na rua, bate uma idéia... Eu estudo

Belas Artes. Queria te desenhar.
- Por quê?
- Sabe Gustav Klimt?

Sabia Klimt. Talvez ele soubesse My Funny Valentine. Tudo era possível agora.

- Tô fazendo uma aula de art nôvô. Você parece a Judith, tem uns dois quadros dele com esse nome, uma mulher.. eu podia fazer

uma Judith na praia, biquíni aceso, os prédios atrás. Ia ficar muito doido. Podia meter serigrafia, Warhol, alguma coisa em

cima disso, misturar tudo.

Não conhecia o quadro, Judith parecia mais nome da avó de alguém, e meter em cima e misturar tudo era uma puta idéia.

Fumaram. Aparentemente, o MOLEQUE tinha um peso inteiro dentro da bolsinha de pano, e seda, tinha seda, não precisavam pedir

pra ninguém nem incorporar desconhecidos ao ritual, embora alguns resistentes do pós pôr-do-sol estivessem de olho grande pro

baseado deles. Na praia, horário de verão, céu claro às 19h, ainda fica uma penca de gente seca por um baseado. Um maluco e

outro calibrando pra naite, insistindo na fiscalização dos derradeiros biquínis. Às vezes, rola um showzinho em palco

improvisado ou mesmo sem palco, na areia da praia mesmo, com eletricidade puxada dos quiosques do calçadão. Não era o caso

naquele fim de dia. Não tinha nem mesmo um péla-saco tocando violão. Só ela, o menino e uns desocupados perdidos espalhados

desencanados. Riram tanto, conversaram, descobriram afinidades e um monte de coisa nadavê entre os dois que, por se

comunicarem com o que parecia ser uma curiosidade mútua um pelo outro, funcionavam exatamente como as afinidades - ou seja,

como ponto de apoio, não de desestabilização do contato. E ele ainda queria desenhar.

- Mas fica melhor sem a blusa.

Posou abraçando os joelhos, mas de um jeito descontraído. Trocaram e-mails, esperava receber dele um esboço nos próximos dias

ou, quem sabe, o produto final daquela tarde estranha.

- Você me escreve?
- Escrevo, Judith.
- Agradeço, Klimt. - deixou um sorrisão vincar-lhe os cantos da boca. O garoto deu-lhe um beijo no rosto. Ela não dormiu

naquela noite.

Era ridículo ir pro trabalho cheia de olheiras por causa daquilo. Levantou-se da cama sem ter descansado, alimentou o gato,

tomou banho quente, limpou a caixa do gato, vestiu-se, beijou o gato entre as orelhas, fechou a porta e saiu. Foi assim de

segunda a sexta-feira, as bolsas debaixo dos olhos cada dia mais escuras. E nenhum e-mail.

O risco-país aumentou por causa da possibilidade de o candidato à presidência pela oposição ganhar as eleições. Uma

possibilidade, entre tantas outras, projetava-se do futuro para o presente e alterava esse presente, fazendo o mercado

tremer. Pulou num clique da página de política para o horóscopo. "Faça um acordo com o Tempo: você deseja as coisas e elas

vão acontecer, se você fizer todo o possível para isso. Mas só quando Ele decidir. Paciência." Tinha, e muita; precisava

recordar os lábios grossos, a expressão dos olhos pequenos enquanto desenhava, o jeito como ele a estudava, a vitória de ter

sido escolhida para o retrato entre tantas mulheres na praia superlotada. Queria eliminar as preocupações que lhe causavam o

fato de ele ainda não ter enviado e-mail algum com qualquer retrato. Tinha que confabular com o zodíaco e fazer as coisas

acontecerem. E, mesmo com todos esses afazeres mentais de extrema importância, precisava escrever sua coluna sobre a

repercussão das pesquisas eleitorais no mercado. Ignorou o burburinho nas baias adjacentes da redação e começou:

"É preciso negociar com o Tempo..." Sua opinião era de extrema importância para que as pessoas tivessem paciência. O futuro

devia ser abandonado à frente, enquanto as mentes ansiosas que especulavam sobre ele fizessem o caminho de volta ao presente

para vivê-lo sem a restrição a uma única possibilidade. "Tudo é possível agora mas, se projetamos as expectativas num só

acontecimento, paralisamos o presente. É provável mesmo que o capital produtivo e sua correia de transmissão - investimentos,

ampliação, produção, serviços, empregos, salários, encargos, tributos, confiança e futuro - sofram com um arrocho após a

eleição. A vitória do candidato representa um risco de ruptura, pois os governos de seu partido pelo país sustentam um

histórico de apoio às invasões e quebras de contrato (vide o caso do Rio Grande do Sul). O mercado é resultante da razão e

ação de 6 bilhões de pessoas, de modo que, quando o risco-país aumenta, sinaliza receios e incertezas. Portanto, investir por

aqui com a possibilidade de ele vencer, é arriscado. Para atrair capital e investimento teremos que pagar mais. O risco-país

é a realidade que vem do futuro e temos que estar preparados para encará-lo." O garoto-do-futuro, Marty McFly agora com

Parkinson, tinha 24 anos quando fez papel de um adolescente em "De volta para o futuro", filme de 1985. Não parecia velho.

"O que não podemos controlar, devemos esquecer", lembrou o almoço com um velho colega de redação, do tempo do estágio, ele

disse exatamente isso: não tentar controlar o que não está ao nosso alcance para ser modificado. Era inútil, a ansiedade,

mais uma vez, a dominava - agora por urgência de viver, de explorar mentalmente e exaustivamente o desenrolar de uma

determinada situação definida; não por conta de um marasmo absoluto em que nenhuma possiblidade se aventava, como nos dias em

que se sentava em frente à TV para assistir a 42 horas de CNN e matar o fim-de-semana. Hoje havia uma possibilidade, mas seu

único desdobramento interessante era encontrar Klimt na praia. O nome era Beto (não sabia se de Roberto, Alberto ou Humberto)

e Judith, ou Ana Maria Chávez, não tinha mais paciência pra explicar ao país que era preciso correr riscos. Escreveu,

portanto, apenas: "É preciso correr riscos".

Sua coluna estava pronta, não se incomodou em revisar. Não releu mais que o primeiro parágrafo. Pegou a bolsa e saiu

perseguindo Ipanema. Era uma sexta-feira e a praia estava cheia das pessoas que gozavam de férias no verão e os adeptos das

férias permanentes. Fugir da redação no meio do expediente era uma realização gostosa, perturbada apenas pela incerteza do

paradeiro do garoto entre o mar de bundas redondas e perfeitas que inundava a areia. É que naquele dia ele não foi, mas não

fazia mal. A praia tinha pedaços dele em tudo que era canto, grão, respingo de água salgada, que ele certamente tinha se

lavado, mijado, nadado, dormido ali.

Não ia receber desenho porra nenhuma. Ele tava só fumado. Ou não. Podia ter ficado sem conexão. Artista é meio maluco, não

paga provedor, usa internet na faculdade e na faculdade nada nunca funciona, lembrava bem de como era no seu tempo - nem

computador tinha. Aliás, faz tempo. Melhor esquecer. Ou não. Podia ter deixado o telefone, era mais seguro. Mas se ele não

ligasse seria pior, porque... que tragédias podia imaginar para um pedacinho de papel com seu número anotado que

justificassem um não-telefonema? "O telefonema de um bêbado é uma coisa myuito importante", lembrou mais uma vez da época do

estágio, dessa vez um amigo de quem ela gostava - gostava até mais do que ela chegou a confessar pra gente naquela de

barzinho e confissões - era ele, tentando explicar porquê tinha ligado na noite anterior dizendo coisas embaralhadas. Mas ela

não quis entender, ele era alcoólatra - só isso - e ela sabia muito bem o que acontecia com mulher de alcoólatra. Estava aí

um caminho que podia prever. Nunca mais falou com ele, nem quando recebeu o convite de casório do cara. Só comentou comigo,

muito por alto, que a dúvida era se ele gostava dela porque vivia de porre ou se podia gostar também sóbrio. Afinal, era

melhor assim, ele nunca ia deixar de beber e ia espancá-la umas três vezes por semana, mais do que conseguiria ficar de pau

duro pra trepar ao longo de um mês inteiro. Melhor assim, porque dizem que no casamento ele não encostou nem no champanhe

porque não era mais nenhum adolescente e na verdade tinha inventado de jogar tênis e vivia numas de geração saúde desde

então. Paciência, quem podia imaginar?

No fim do dia, depois que o sol e o último baseado se extinguiram, levantou-se da areia sentindo ainda uma besteira de

esperança ao vestir a camisa branca de botões por cima do biquíni. Olhou a água onde já refletiam os postes do calçadão e

gostou do mar respingado daquela luz artificial. Vinha uma ou outra onda pequena, que um labrador amarelo, puxando seu dono

pela coleira, tentava abocanhar quando a água virava espuma na areia.

Foi embora seca, já era de noite. Passou na livraria da Visconde de Pirajá pra comprar Colomy.

preciso fazer as unhas apaixonada.

- Num é esquisito esse negócio de obrigado-obrigado quando a gente conmpra alguma coisa ou pede uma comida, tipo esse cara

agora na farmácia, tu comprou o Sorine e disse obrigada quando ele te deu o troco e aí ele disse obrigado também, e um

retruca o agradecimento do outro, eu acho artificial pra caralho, acho mais artificial que o agradecimento sozinho de um só.

pintar as unhas, apaixonada. - É meio esquisito mesmo. Parece que os dois lados são culpados de um crime que ninguém sabe o

que é. A língua denuncia...

- Isso é academicismo, um ismo. Por falar nisso, eu achei o teu conto meio fora da realidade. eu gosto muito de ter a

liberdade de dizer o que eu pensei, principalmente, prefiro dizer alguma coisa que te faça falar bastante porque se eu disser

só "interessante" você só vai dizer "obrigada".

- Fora da realidade? Tô no caminho certo, então. É pra ser ficção. ficções o melhor borges o seu escritor preferido.

- Não é isso... 35 anos, velha? Trin-ta-e-cin-co é nova à beça, a mulher é nova. agradar.

- Mas eu quis ela neurótica, se achando acabada. Ela tá de olho num garotinho numa época em que, aos 20, as mulheres ´tão

fazendo plástica, lipo, três horas de academia. E, na verdade, em qualquer época trin-ta-e-cin-co anos pra mulher já era, pra

homem ainda tá garotão. hipócrita.

- Você não tem medo de parecer vazia? eu acima te como. Eu acho que isso é futilidade eu, acima.

- Já passei da idade de me preocupar com o que os outros vão achar. fazer as unhas.

- Mas o conto acaba assim?

- "Ela tava só fumado"?

- É.

- É, acho que vou parar aí.

- Você tá largando a história por algum motivo. Te incomodou escrever isso?

Era melhor sentar num buraco pra conversar essas coisas, de repente adega portugália de novo? ele pode enjoar ele pode não

sair mais comigo pegar metrô, ida e volta quase cinco reais, ela professora ganha bem mas ele aluno ganha bolsa furreca e

mora com a mãe, mas que merda.

Tinha um espaço entre uma aula e outra. Ela fazia mestrado, era redatora publicitária, tinha publicado uns contos aí. Ele

começava a achar que tinha feito o vestibular errado depois de passar no funil de 300 candidatos por vaga em comunicação

social; devia ter feito Letras. Mas, uma vez lá, ganhar dinheiro com publicidade um dia. Escrever outras coisas hobbie. Não

tinha pressa, tinha 19 anos. conheceram num seminário, ambos carregava "ficções" borges.

(isso não tá muito auto-biográfico não?)

(o Sabino-"encontro marcado"-Fernando através do espelho o Graciliano-"não há arte fora da vida, não acredito em romance

estratosférico. o escritor está dentro de tudo que se passa, e se ele está assim, como poderia esquivar-se de

influências?"-Ramos? pretensão mulherzinha barriga no tanque etc etc)

- E outra... não dá pra acreditar numa colunista de economia bem-sucedida solteira. Pior: que larga o expediente pra ir pra

praia atrás dum garotão. Ela trabalhava num grande jornal?

(já tavam em frente à portugália, escolhendo uma mesa na calçada do largo do machado).

- Tem muita gente sozinha e bem-sucedida no mundo, não é difícil.

- Acho inverossímel.

- E isso que você tá dizendo não é um pensamento rasinho? Ser bem-sucedido é não ser solitário? Você tá acabando com o meu

texto. É tão ruim assim?

- Você não aceita crítica! Não é pessoal, é crítica ao tra-ba-lho.

- Mas o trabalho sou eu!

- Então é auto-biográfico?

- É bio-degradante. Auto-degradante. Rárárárá.

Ráráráriram na terceira cerveja. (trabalhar melhor o personagem, é mais jovem, talvez 19. não pode ser tão atirado e ela não

deve ser tão complacente (bunda-mole) porque superior te como. desde que me conheceu seus dentes não cabem mais dentro da

boca. continuo escrevendo a história na cabeça).

- Nada ali é por acaso, entendeu, são camadas...

- Eu acho chato. Você tem quanto, 46, 47? Porque não fala disso, de querer um MOLEQUE, estando você com essa idade? Esse

negócio da neura dela, de ela ter trin-ta-e-cin-co anos de idade, isso aí é um disfarce que não tá pegando, eu acho que você

tinha que assumir a tua idade, o que você sente por causa disso... Qual é o problema da coroa pegar o garoto? É aí que travou

o texto.

- Eu não tenho nada com isso, é uma personagem, entendeu. Não travou, o texto é isso, é poético.

(meu vinho seco na caneca da portugália, quase posso ver as unhas dele são limpas, um garoto bom como eu, um pouco menos

sacana que eu talvez, e ela fica levando ele pra esses lugares).

- Ah, tu quis fazer um negócio moderno e sentimental.

- Sabe como é que a gente sabe que ainda tá na modernidade e que a pós-modernidade nunca existiu? Quando um espirro de pica

que nem você fala esse tipo de coisa.

Rárárá. Ela ainda:

- Fica categorizando: "sentimental", "mUderno"...

- Normal, porra, cresci assim. (não tem mundo antes disso pra mim, digo, para o garoto - é mais jovem que eu).

- Daí não conhece outra coisa, autenticidade é sempre questionável, não tem nada que se salve.

- Por que você não escreve sobre aquela festa no Consulado que você pegou o maluco atrás da cortina do gabinete do cônsul?

- Tu vai usar isso contra mim a vida toda.

- Contra não, a favor. É experiência, não é? Tu não tava cheia dos graciliano, dos sabino? Escreve... transforma.

- Ah, MO-LE-QUE.

(EU SOU MO-LE-QUE, mas é comigo que tu fala essas paradas. não sei o que é. lembra dum e-mail de uma amiga tua de Washington

com piada de mulher: com a "igualdade entre os sexos" veio CULPA feminina pós-queima de sutiã; elas - eu não! eu não! -

tratando esses putos falidos a pão-de-ló e eles se achando brédi píti mas é tudo saco murcho. (parou pra beber a oitava

caipirinha) mesmo assim não dá pra sucumbir ao cinismo, por mais manés que sejam esses caras que a gente gosta, porque não

tem coisa mais corta-tesão que cinismo).

(Ga-ro-to. As maçãs envolvem os corpos nus nesse rio que corre em veias mansas dentro dentro de miiiim. A melhor coisa desse

bar é a trilha sonora de anjos e arcanjos ousam nesse édem infernal / e a flecha do selvagem matou mil aves no ar / quieta a

serpente se enrola nos meus pés / é lúcifer da floresta / venha amor / que o paraíso / num abraço amigo sorrirá pra nós). Meu

amor macio, tinha Mutantes na época, eu 17. You think we look pretty good together ... i look pretty young but i´m just back

dated yeah.)

(o que você acha que eu devia fazer? não acho isso certo. não me interessa. eu acho que não vale a pena. não me interessa. eu

não vou deixar de fazer, eu uso o que eu quiser e não preciso explicar. mas se você procurasse um jeito de apresentar isso

com mais... clareza, deixar óbvio que é ficção. é ficção, não é? se não ficou claro, metade do problema é de quem lê. a minha

parte tá feita. quanto menos gente paranóica no caminho, melhor. mas você não acha que podia ganhar alguma coisa com isso? eu

sou totalmente ignorante. e eu tô cagando e andando. pensa nas pessoas que gostam de você. a decepção só existe quando ainda

existe expectativa. e profissionalmente. profissionalmente pega muito mal pra você. imagina como esse último texto foi lido.

ninguém vai te dar um emprego depois de ler isso. e daí? é o nirvana da existência. eu arrebento a tua cara usando apenas a

força do meu espírito-de-porco. essas coisas que você tem dito sobre seu patrão ter hálito de fezes... sim, bafo de cocô.

você não acha um pouco infantil? não. teoria da dependência. não tenho superiores. se você parar de beber agora, pode morrer

como lester bangs e o pai do henry miller. meu avô era um sapateiro comunista. há alguns anos, descobriram que ele tinha 13

mulheres trabalhando pra ele na praça mauá antes de conhecer minha avó. o sogro o obrigou a largar um negócio lucrativo pelo

casamento. antepassados presentes como fantasmas de chapéu e terno brancos humildes desde a primeira visão aos sete anos,

nunca poderia disfarçar essa origem distante e transparente por causa das gerações seguintes que foram à universidade com

dinheiro de catador de papelão. eu não fui genética e historicamente constituída pra escrever (estudos culturais, inglaterra,

década de 80) como você acha que isso deve ser feito. e, no entanto, o que é isso que acabo de fazer? pode imprimir e limpar

o rabo se quiser mas vai continuar sendo o que eu imaginei em primeiro lugar e não o que você quer que seja.)

(as maçãs envolvem os corpos nus)

- Oi?

- Tô cantando.

- Ahn.

(sem ninguém nos ver).

- Esse bar é meio rípi.

- Me chamando de velha, o moleque filho da puta.

De repente cessao o fluxo e eu só enxergo o escuro fora dos meus próprios olhos novamente. Dentro, apagados, duas mulheres,

uma que se acha muito velha, outra que não se acha tão velha assim, dois garotos muito novos, eu, talvez, aos 17... primeira

pessoa. "Numa cama estreita de carne e sonhos, sem dormir..." Aqui não erro, aqui tenho todas as qualidades. Começar a

escrever nas férias.


***














Numa cama estreita de carne e sonhos, sem dormir, por que não? Sair... mas aqui não erro, aqui tenho todas as qualidades.

- Tu tá muito sensível. Serinho.

- Mas chamou de rípi. Categorizando.

- Cê que sabe.

- Clarice Lispector e Chico Buarque.

- Que que tem?

- Ele deu toco nela. Por quê?

- Porque ela era velha.

- Razoável. O desejo tá atrelado a isso?

- O dele, provavelmente, tava.

- A questão, MO-LE-QUE, é que rola uma certa tradição, MANJA? (manja, 70´s, quando você não era nem embrião), de o sujeito

contar história que tem mulher e ela vira suporte bucal de piroca ou deusa delicada inatingível da punheta. Não tem mulher,

mulhé mulé mermo não tem (cerveja). É como se ela não quisesse nada, só amor na ponta duma pica e o cara fosse o mártir dessa

empreitada fuderosa em que ele consente e ao mesmo tempo conquista, ela uma coisa que não quer-querendo, que na verdade não

tem muita escolha porque a coisa lá tá feia.

- E não é assim? Vê aquela menina que faz aula contigo, 80 quilos de querer-querendo e fazendo de que não quer mas qualquer

negócio que chegasse junto ela travava até o talo.

- Razoável, razoável. Ela não tá errada.

- E tá errado quem descreve isso? Quero dizer, desses que falam de toda mulher que conhece como se fosse a pobre da puta que

comeu mal de pau mole quando veio no Rio fazer prova pro Globo. O lance de ser cínico, eu sei, dá pra entender, é de agora,

se ele não fizer isso se sente corno, e o tempo todo a narrativa em primeira pessoa (eu na verdade gosto muito) e a mulher

calada ou no máximo hmmm hmm com uma rôla na boca... mas tem que ser isso?

- Depende... depende... (morte). Tu tem a opção de virar a Jane Austen de calça do século XXI, qué? É 8 ou 80.

(chega de beber aqui meu amor, vamo dar uma volta)

- Vamo andar, Marco.