29.5.03

"É com esse que eu vou casar", teria dito, se vivesse num século em

que o matrimônio era norma vigente. Num movimento automático, todo

tenso, vestiu a camisa branca que trazia como saída-de-praia. Mas não

ia embora, não podia ir. A prudência de esconder o busto e o estômago

não partia de natureza excessivamente pudica e, portanto, deslocada

no tempo: reconhecia, com certo constrangimento e pesarosa derrota, a

defasagem de seu corpo em relação aos das outras mulheres que tomavam

sol ali pelo Posto Nove.

Não, não conseguia ir embora. Tinha visto um cara, um rosto, um

estranho - talvez ele carregasse jeitos de outros amores, tatuagens

parecidas, curvas de músculos que ela conhecia do passado - precisava

ficar e descobrir o que era. Por que prestar atenção nele, naquele

rapaz específico, quando a praia estava cheia de infinitas

possibilidades, várias delas até menos díspares, mais adequadas aos

seus trin-ta-e-cin-co anos? A pele e a turma em volta dele

denunciavam um final de adolescência; podia ser que vinte, podia ser

que 18. E aí a balzacona, a véia não podia nem rir sozinha com a

clássica "eu podia ser mãe dele", porque nem isso: ela já tomava

pílula quando ele nasceu! Escândalo, derrota, saída-de-praia,

benzadeus esse menino. Ficou olhando.

Ele jogou frescobol, apertou um senhor baseado, fumou, mergulhou,

voltou se sacudindo como cachorro, levantou um dedo pra pedir Skol,

dormiu de bruços, virou de lado, acordou, bebeu outra Skol. Foi

interrompido pelo celular em todas as etapas enumeradas. Sua galera

finalmente deu sinais de que ia levantar acampamento e ele ficou de

pé com as quatro tanajuras sem celulites (uma incrível vantagem) e o

magrelo espinhento de cabeça raspada que parecia ser disputado por

três delas. Mas despediu-se. Voltou a se sentar na areia assim que o

grupo deu as costas pro mar. Ela precisava ficar ainda e ver que ele

era daqueles neo-hippies aloprados que batiam palmas pro pôr-do-sol e

ir pra casa tranqüila, guardando menos rancores por conta das suas

irreparáveis diferenças. Mas o rapaz, o guri, o MOLEQUE puxou da

bolsa de pano um caderno e começou a rabiscar qualquer coisa. O

clap-clap pro sol começou às sete e ele não largou a caneta pra

aplaudir. "Deve ser a lição de casa", ela pensou, sabotando com

material de seu próprio pocinho fundo de cinismo o interesse que

tinha por aquelas folhas de papel. A auto-sabotagem é uma arma fina e

feminina, sacada sempre que a imunidade da fêmea defasada é abalada

por algo desconhecido e embasbacante de tão bonito. Porque ele era

bonito. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto e nem devia

ser tão belo assim: esses eram os piores casos. Achar perfeito o que

não é perfeito, reconhecer que um nariz é torto, que um par de

orelhas são de abano - não que a figura dele combinasse tais exatas

caracteísticas - e ainda assim ser capaz de afirmar beleza no

erro... lembrou My Funny Valentine, doce, cômico,

engraçado, o rosto menos que grego e que era assim que as coisas

começavam, embora ali estivesse na cara que nada ia acontecer. E

arrematou a sabotagem lembrando que, se standards já eram

antigos quando ela tomava pílula e ele nascia, hoje era ridículo

lembrar que eles existem.

Enquanto o guri, o MOLEQUE nascia, ela comprava entrada pra ver o

AC/DC no Rock In Rio I (UM!). Enquanto o rebento vinha ao mundo, ela

perdia a virgindade com um amigo do irmão no estacionamento das Casas

da Banha (rede de supermercados extinta). Enquanto uma incauta

expelia o resultado dum espirro de pica gosmento que, ninguém

apostaria, ia se tornar a coisa mais bonita que a coroa já tinha

visto, a coroa tinha uns 15 anos e dava mais que chuchu na serra.

Naquela época, aliás, a expressão "dava mais que chuchu na serra" era

nova. Búzios não estava tão cheio de argentinos, Ipanema não tinha

livraria com café 24h, o tráfico limitava-se a vender as paradinhas

sem grandes conflitos e era isso aí. "Roque Santeiro" era estréia,

não reprise, e Michael Jackson vendia disco. É, DISCO, vinil, que CD

só chegou muito tempo depois. Era melhor nem pensar.

E, no entanto, desde que bateu os olhos no moreno, seus dentes não

cabiam mais dentro da boca. Só fazia rir. E tinha medo que aquilo

acentuasse os vincos que ressentia no rosto, que externasse o óbvio:

que era uma velha, uma velha cheia de graça pra cima dum garotinho.

Um resto de sol apontava firme na linha dos seus olhos e isso fazia

com que risse mais que o riso espontâneo - espremia um pouquinho a

vista pra evitar os últimos raios alaranjados e ver o menino. O

menino tinha se levantado e, agora, virado pra ela, continuava a

rabiscar. Não podia ser uma coisa dessas; devia estar esperando o

cara da Skol virar também pra pedir mais uma. Não podia ser que

andava na direção dela. Apertou mais os olhos e viu, sem controle,

sem querer, veias debaixo do short de tac-tel - viu, dentro dos

próprios olhos ainda pintados de resto de sol, porque quase não podia

enxergar fora da própria cabeça naquele momento. Porque era crucial:

a beleza caminhava decidida a encontrá-la. E era um farrapo, ela, um

farrapinho de trin-ta-e-cin-co anos, AC/DC, Roque Santeiro, vinil.

Terrível! Ajoelhou do lado dela.

Se pudesse ter fixado os olhos em qualquer ponto, sem o nervosismo

que a fazia piscar como um estrobo descoordenado, teria definido à

sua frente as coxas retesadas, um risco fundo em cada lateral, um

peito com pêlos certos de uma cor não definida entre o castanho e o

loiro, tatuagens de outros tempos talvez. Não viu nada disso. Ouviu:

- Oiii. Desculpa eu ficar olhando, mas é que.
- Oi! (num fode)
- Tudo bem? É que eu queria te desenhar.

Num fode.

- Por quê?...////...///?!...///
- Desculpa, eu sou meio cara-de-pau. Mas tenho que ser porque às

vezes eu vejo alguém na rua, bate uma idéia... Eu estudo Belas Artes.

Queria te desenhar.
- Por quê?
- Sabe Gustav Klimt?

Sabia Klimt. Talvez ele soubesse My Funny Valentine. Tudo era

possível agora.

- Tô fazendo uma aula de art nôvô. Você parece a Judith, tem uns dois

quadros dele com esse nome, uma mulher.. eu podia fazer uma Judith na

praia, biquíni aceso, os prédios atrás. Ia ficar muito doido. Podia

meter serigrafia, Warhol, alguma coisa em cima disso, misturar tudo.

Judith era o nome da avó de alguém, meter em cima e misturar tudo uma

puta idéia. Fumaram. Aparentemente, o MOLEQUE tinha um peso inteiro

dentro da bolsinha de pano, e seda, tinha seda, não precisavam pedir

pra ninguém nem incorporar desconhecidos ao ritual, embora alguns

resistentes do pós pôr-do-sol estivessem de olho grande pro baseado

deles. Na praia, horário de verão, céu claro às 19h, ainda fica uma

penca de gente seca por um baseado. Um maluco e outro calibrando pra

naite, insistindo na fiscalização dos últimos biquínis. Às vezes,

rola um showzinho em palco improvisado ou mesmo sem palco, na areia

da praia mesmo, com eletricidade puxada dos quiosques do calçadão.

Não era o caso naquele fim de dia. Não tinha nem mesmo um péla-saco

tocando violão. Só ela, o menino e uns desocupados perdidos

espalhados desencanados. Riram tanto, conversaram, descobriram

afinidades e um monte de coisa nadavê entre os dois que, por se

comunicarem com o que parecia ser uma curiosidade mútua um pelo

outro, funcionavam exatamente como as afinidades - ou seja, como

ponto de apoio, não de desestabilização do contato. E ele ainda

queria desenhar.

- Mas fica melhor sem a blusa.

Posou abraçando os joelhos, mas de um jeito descontraído. Trocaram

e-mails, esperava receber dele um esboço nos próximos dias ou, quem

sabe, o produto final daquela tarde estranha.

- Você me escreve?
- Escrevo. Valeu, Judith.
- Eu que agradeço, Klimt. - deixou um sorrisão vincar-lhe os cantos

da boca. O garoto deu-lhe um beijo no rosto. Ela não dormiu naquela

noite.

Era ridículo ir para o trabalho de olheiras por causa daquilo.

Levantou-se da cama sem ter repousado, alimentou o gato, tomou banho

quente, limpou a caixa do gato, vestiu-se, beijou o gato entre as

orelhas, fechou a porta e saiu. Foi assim de segunda a sexta-feira,

as bolsas debaixo dos tornando-se cada dia mais escuras. E nenhum

e-mail.

O risco-país aumentou por causa da possibilidade do candidato da

opisção à presidência ganhar as eleições. Uma possibilidade, entre

tantas outras, projetava-se do futuro para o presente e altera esse

presente, fazendo o mercado tremer. Saiu da página de economia e leu

o horóscopo. "Faça um acordo com o Tempo: você deseja as coisas e

elas vão acontecer, se você fizer todo o possível para isso. Mas só

quando Ele decidir. Paciência." Tinha, e muita; precisava recordar os

lábios grossos, a expressão dos olhos enquanto desenhava, o jeito

como a estudava, a vitória de ter sido escolhida para o retrato entre

tantas mulheres naquela praia imensa e superlotada. Queria eliminar

as preocupações que causavam o fato de ele ainda não ter enviado

e-mail algum com qualquer retrato. Tinha que confabular com o

horóscopo e fazer as coisas acontecerem. E, mesmo com todos esses

afazeres mentais de extrema importância, precisava escrever sua

coluna sobre a repercussão das pesquisas eleitorais no mercado.

Ignorou o burburinho nas outras baias ao redor da redação e começou:

"É preciso negociar com o Tempo..." Sua opinião era de extrema

importância para que as pessoas tivessem paciência. O futuro devia

ser abandonado à frente, enquanto as mentes ansiosas que especulavam

sobre ele fizessem o caminho de volta ao presente para vivê-lo sem a

restrição a uma única possibilidade. "Tudo é possível agora mas, se

projetamos as expectativas num só acontecimento, paralisamos o

presente. É provável mesmo que o capital produtivo e sua correia de

transmissão - investimentos, ampliação, produção, serviços, empregos,

salários, encargos, tributos, confiança e futuro - sofram com um

arrocho após a eleição. A vitória do candidato representa um risco de

ruptura, pois os governos de seu partido pelo país sustentam um

histórico de apoio às invasões e quebras de contrato (vide o caso do

Rio Grande do Sul). O mercado é resultante da razão e ação de 6

bilhões de pessoas, de modo que, quando o risco-país aumenta,

sinaliza receios e incertezas. Portanto, investir por aqui com a

possibilidade de ele vencer, é arriscado. Para atrair capital e

investimento teremos que pagar mais. O risco-país é a realidade que

vem do futuro e temos que estar preparados para encará-lo." O

garoto-do-futuro, Marty McFly agora com Parkinson, tinha 24 anos

quando fez papel de um adolescente em "De volta para o futuro", filme

de 1985. Não parecia velho.

A única probabilidade interessante era encontrar Klimt na

praia. Seu nome era Beto (não sabia se de Roberto, Alberto ou

Humberto) e Judith, ou Ana Maria Chávez, não tinha mais paciência

para explicar ao país que era preciso correr riscos. Escreveu,

portanto, apenas: "É preciso correr riscos".

Sua coluna estava pronta, não se incomodou em revisar. Não releu mais

que o primeiro parágrafo. Pegou a bolsa e saiu perseguindo Ipanema. Era uma sexta-feira e a praia estava cheia das pessoas que gozavam de férias no verão. Fugir da redação no meio do expediente era uma realização gostosa, perturbada apenas pela incerteza do paradeiro do garoto entre o mar de bundas que inundava a areia.













6.5.03

Eu me sinto melhor quando meus amigos estão se dando bem. Não que o dinheiro deles vá parar no meu bolso; se eles recebem um salário, o destino dessa grana é certo e reto como um (eu ia dizer padre, mas me deparei com o óbvio ridículo que a comparação implica, e aí tentei achar outro candidato a modelo de retidão entre todas as figuras e profissões que conheço e nada me passou pela cabeça. Do presidente ao voluntário do CVV, estão todos corrompidos até o talo)... esquece. A questão é que o salário dos meus amigos não passa pelas minhas mãos pedintes a menos que eu concorde em pegar as notas sujas de vermelho, cor da raspa do saldo negativo deles no banco. Eu posso conseguir minhas próprias notas manchadas, então não peço empréstimo aos amigos. A questão é que eu me sinto mais confortável se eles estão trabalhando e, mal ou bem, pagando suas contas. Isso me dá a impressão de que as coisas estão absolutamente normais por aí, ainda que a minha própria vida seja a representação terrena do caos que rege o universo. Preciso saber que, em algum lugar muito próximo de mim, pessoas trabalham e são remuneradas, pessoas que tiveram as mesmas oportunidades que eu, que estudaram, foram bem alimentados e deixaram boa impressão numa entrevista de emprego. Enquanto eu leio e escrevo e odeio tudo que eu escrevo e rasgo ou deleto e não atendo o telefone e não acredito em nada que me dizem, essa gente circula por aí acreditando no acordo com o mercado e recebendo dinheiro pela crença que sustenta, crença é crédito e débito. Acordar em determinado horário, pegar a condução e entrar num prédio onde ficam fazendo alguma coisa o dia inteiro. No final do dia (eles chamam o dia de expediente), voltar pra casa e ligar a televisão. É isso que todo mundo tem que fazer e eu gosto de saber que ainda conheço gente que faz exatamente o que deve ser feito. Eu não tenho cumprido minha parte no trato social (trabalhar e reclamar), mas sinto-me confortavelmente amparada pela consciência da capacidade ilimitada pro trabalho que pulsa em meus amigos.

Não pensei em nada disso na hora de subir as três escadas rolantes e andar aquele monte de chão debaixo da terra que é o metrô de Copacabana. Quem foi o palhaço que projetou a Cardeal Arcoverde? Por essas e outras não pago imposto. Pensei em Jackie Chan enquanto ia carregando quatro sacolas cheias de roupa suja acumulada por vários dias. Em duas delas, eu tinha colocado as roupas molhadas que eu desisti de lavar no meio do processo, quando me dei conta que ainda não tenho varal pra secar tudo. A idéia era levar a roupa pra casa de um amigo e lavar por lá, mas as sacolas já estavam rasgadas demais quando emergi do buraco do metrô. Ainda por cima, tava chovendo. Olhei pra trás e reconheci a trilha de peças familiares que logo logo algum mendigo mais esperto ia querer pegar se eu não fosse rápida: uma das minhas cinco camisetas brancas iguais, meu calção roxo e amarelo do boxe, um par de meias amareladas (originalmente brancas)... voltei, catei tudo e enfiei no que restava da sacola maior. Não dava pra ir até o Leme assim, acabei deixando tudo na primeira lavanderia que eu vi, logo em frente à estação. Paguei metade da conta e fui pra casa do cara. O Jackie Chan teria feito o mesmo. Suportaria com dignidade toda a distância percorrida carregando o peso e cataria as roupas que caíram no chão sem precisar da ajuda de ninguém e aí procuraria uma lavanderia. Pastelaria também é um negócio da China mas não resolveria o caso. A lavanderia onde eu deixei as roupas não tinha nenhum chinês. Tinha uma menina que não sabia operar o computador e pediu meu endereço e demorou à beça pra digitar o nome da rua, que tem cinco letras. Fiquei lá esperando. Eu tinha que chegar na casa do meu amigo antes das 14h pra render ele na vigília. O banheiro dele tinha explodido ou alguma coisa assim e eu tinha que ficar de olho enquanto o pedreiro quebrava os restos de azulejo pra colar tudo de novo, enquanto meu amigo ia pro trabalho.