1.3.02








no.com.br, 01 de Março de 2002
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Depois do arco-íris


”Nesse negócio, vale qualquer coisa. Desde que você consiga dormir à noite”. - Dick Clark, apresentador de programa de música e variedades nos Estados Unidos, em entrevista a Ben Fong-Torres, em 1973.

As coisas que nos tiram o sono são coisas que não valem a pena, por mais grana que tragam, por mais reconhecimento que tragam.” - Marcelo Camelo


Certamente, você já ouviu uma música do carioca Marcelo Camelo. Deve ser possível contar nos dedos das mãos quem mora no Brasil e não ouviu “Anna Júlia” ao menos uma vez, desde 1999, ano em que Los Hermanos gravaram a faixa.

Quando conversamos pela primeira vez, em 98, num boteco da Praia de Botafogo, a banda de Marcelo contava então menos de uma dezena de apresentações, todas em pequenos bares como o Empório, em Ipanema, e o Bukowski, em Botafogo, mas já havia arrebanhado um público fiel que sabia de cor suas letras. Agora, depois do verão de “Anna Júlia”, das regravações do sucesso assinadas por Frank Aguiar e Jim Capaldi (com participação especial do ex-Beatle George Harrison) e de ganhar – acanhado – o prêmio da MTV para o qual Chico Buarque também havia sido indicado, a única mudança evidente em Marcelo parece ser a enorme barba que tenta somar mais idade a 24 anos completados este mês. “Todo mundo pergunta esse lance das barbas e eles sempre fazem palhaçada pra responder. Mas é que eles gostam de conquistar ‘sendo feios’, essas coisas...”, explica Marcus Sketch, amigo próximo dos Hermanos que, assim como Alex Werner, cuida do website oficial da banda.

Mas o visual “Talibã” não é a única mudança na banda. Tudo começou com uma alteração em seu som, que abandonou o hardcore para fazer harmonias mais complexas e andamentos mais lentos, que as privilegiam. Depois, a banda trocou de empresário (“Agora estamos com um empresário “menor”) no final do ano passado. Seu status na gravadora Abril Music também sofreu alterações. A mesma coisa aconteceu com seu lugar nas paradas das rádios e da MTV.

A gravadora não acreditou em “Bloco do Eu Sozinho”, sucessor do álbum que estourou com “Anna Júlia”, em 1999, ainda que “Bloco” tenha recebido críticas entusiasmadas em todo o país. A Abril exigiu que a banda refizesse o trabalho, do repertório à produção, pedindo inclusive a substituição do produtor Chico Neves por Marcelo Sussekind (O tecladista Bruno escreve sobre a troca de produtores no site da banda, em “biografia 2001”). A banda não cedeu e entregou o trabalho para a distribuição mantendo suas características essenciais intocadas pela remixagem de Sussekind. A Abril, em troca, ofereceu divulgação fraca, o que resultou em poucos shows pelo país.

O vocalista, guitarrista e principal letrista da banda chega descalço, de bermudão largo e camiseta listrada, à portaria do prédio onde mora no Humaitá, Zonal Sul do Rio de Janeiro.

- Não repara na bagunça. Homem morando sozinho... sabe como é...

Marcelo se mudou há menos de 15 dias para o apartamento. Na sala, pilhas de CDs enfileiradas tomam uma das paredes; no único armário à vista, parte de sua coleção de vinis: Raridades nacionais, onde a banda garimpa covers como “A Palo Seco”, de Belchior, tocada no programa Luau MTV, em Fevereiro. Além do armário, os únicos móveis são uma mesinha de centro e um sofá. A caixa-coletânea de Chico Buarque, um de seus compositores preferidos, ao lado de Noel Rosa, faz parte do cenário.

Entrego a ele o CDR de uma banda independente carioca. Como bom ex-estudante de jornalismo (PUC-RJ), ele me faz perguntas:

- Quanto é que custa pra fazer um CDR, por unidade?

É seu jeito de começar a conversa, falando dos tempos em que fazia o fanzine “Doostraw” com o amigo e produtor Alex Werner, e distribuía fitas-demo dos Hermanos entre outros fanzineiros para conquistar público entre os freqüentadores de casas como o Garage, abafado, com palco pequeno e difícil acesso no Rio. A cena de rock alternativa de onde Los Hermanos emergiram em 1999 ganhou uma tendência de se dirigir – ou pelo menos tentar – cada vez mais ao mainstream. Na época da entrevista no boteco em Botafogo, os Hermanos trabalhavam, então, com estrutura de banda independente mas responsabilidade de banda grande. “Quem gosta mesmo de música quer viver de música,” contou. “Acredito que, se existisse mercado alternativo no Brasil como eu acho que existe nos EUA, com bandas que conseguem sobreviver num esquema independente tocando em tudo que é lugar, fazendo mini-turnês, e o cara até ganha dinheiro com isso... se existisse um esquema assim eu estaria mais que satisfeito.”

Depois de quase quatro anos, um mega-hit e de algum conhecimento adquirido sobre o mainstream de que tanto se falava com alguma ingenuidade, o que a banda busca agora é justamente um “esquema” semelhante, que permita sobreviver no mercado entre a simplicidade da estrutura independente e as obrigações com a gravadora.

- Quando a banda fala é que mais se fode. Quando jornalista fala pela banda, sempre sai um pouco melhor.

É, mas ninguém melhor do que você para falar sobre o pote de ouro depois do arco-íris que parece ser a fantasia de todo artista não-contratado no Brasil.

Marcelo Camelo: É isso... Agora acanhei. – Hesita, mas logo esquece do gravador.

Você vê algo errado na postura das gravadoras hoje em dia?

MC: É uma lista sem fim, mas se resume à falta de respeito pelo artista. Ponto. Isso tem muitas causas, causas muito grandes, muito maiores que a própria gravadora. Isso passa pelas rádios, passa pela televisão, passa pela maneira como as pessoas do mercado vêem o músico, como o próprio mercado fonográfico virou um negócio que tem muito a ver com dinheiro e pouco a ver com arte.

Como funciona isso hoje?

MC: As gravadoras entraram num círculo vicioso de procurar sempre a próxima sensação, a próxima moda, a próxima coisa que vai estourar e vai vender e acabar três meses depois. Parece um cachorro tentando morder o próprio rabo. Elas não formam mais um cast firme, não conseguem ter um artista como Legião Urbana, que não precisa de um centavo do dinheiro pro marketing, não precisa dar um centavo pra Legião Urbana hoje em dia e continua vendendo disco. E que vai vender disco durante muito tempo. Eu fico pensando... será que todas essas bandas do anos 80 que fizeram carreira no Brasil tiveram no primeiro single um megahit? Será que nenhuma bateu na trave? Sei lá, Plebe Rude, Capital? Será que o primeiro single de todas elas foi um grande sucesso? Hoje em dia não se permite mais bater um primeiro single na trave. Não deu certo, já era. No nosso caso, a gente vendeu mais de 300 mil discos do primeiro disco, é um número razoável pra uma banda de rock. Fizemos um segundo disco considerado um dos melhores discos do ano pelo Globo, JB, O Dia, jornal da Bahia, Brasília. E a gente não teve um segundo single. Só o primeiro: Só tocou “Todo Carnaval”. Porque “Sentimental”, a gente fez um clipe, orçamento baixíssimo, e não toca na rádio.

Se a gravadora não ajuda, é ela a culpada por as músicas novas não serem tocadas pelas rádios?

MC: É, precisa de investimento, a gravadora resolver fazer promoção, sim.

Não sai mais caro investir numa banda nova que vai durar pouco do que privilegiar os artistas de seu cast?

MC: Se você realmente consegue encontrar um Frank Aguiar a cada três meses, você faz uma gravadora de sucesso. ...Frank Aguiar, o Harmonia do Samba, todo mundo que vende muito disco em pouco tempo. Mas não seria mais prudente pra uma gravadora que pensa na sua existência a longo prazo, pegar artistas sólidos, artistas que pensem em uma carreira? Talvez, se o presidente de uma gravadora fizer isso hoje, ele perde o cargo. Entendeu? Gravadora não está preocupada com investimento a longo prazo. Cadê o Maurício Manieri? Ele é da Abril. Eu nãos ei onde está o cara. Ele vendeu à beça, cadê o trabalho de continuidade? Não consigo entender porque não valeria a pena investir em carreira. Tudo é muito descartável. A gravadora desacredita completamente sempre se a banda não tem um megahit a cada seis meses. É difícil. A galera de bandas independentes, elas têm que ter muito cuidado com esse sonho de assinar com uma gravadora grande. Quando você entra pra uma gravadora, começa a envolver o interesse de um monte de gente, você começa a sentir muita pressão, é um lugar um pouco diferente. Se você tá disposto a pagar as conseqüências de não ceder... mais que uma disposição de não querer mudar diante das pressão, é uma questão pessoal de não conseguir. Pô, num consigo aceitar que o cara fale pra mim que eu tenho botar no repertório do disco uma música que ele acha mais comercial e ceder a isso... não consigo! Nem que eu quisesse. É uma parada que ia tirar meu sono. E as coisas que nos tiram o sono são coisas que não valem a pena, por mais grana que te tragam, por mais reconhecimento. Ninguém vai responder por você uma pergunta sobre o seu disco. Então que o seu disco só tenha as coisas das quais você se orgulhe.

Houve um hiato de shows entre outubro e agora, fevereiro de 2002...

MC: O negócio do nosso hiato de shows, quando a música não toca na rádio, é difícil conseguir show. Esse é o problema de você ter uma banda com uma estrutura grande e que não tem o apoio da gravadora e que não toca na rádio. Você não tem mobilidade. O grande lance do underground é você ter o seus equipamentos, carregar tudo no seu carro e a sua estrutura se bastar, não precisar gastar dinheiro pra que a banda entre no palco. Você faz show num quiosque se você puder, entendeu? A gente não pode mais fazer isso porque, só no palco, são quatro músicos contratados, então já existe um custo inicial pra que a banda toque. Então tem que ter uma infra-estrutura mínima, um dinheiro mínimo pra tocar. E se a música não tá tocando no radio...

Eles não quiseram ajudar o disco nas rádios? Hoje em dia rádio não toca nada se não rolar um...

MC: Eles não gostaram do disco, eles queriam que a gente refizesse o disco com outro repertório, com outro produtor. Isso não era uma opção pra gente. Disco não é uma coisa que você faz de uma hora pra outra. É um repertório de músicas que você compôs e falam de situações que você passou e que você divide o arranjo com seus amigos, que você passou um tempo fazendo e tal. Muita gente tomou nossa atitude em relação ao “Bloco” como corajosa, mas não acho que seja coragem. Acho que é só uma falta de opção. Da maneira que foi colocado pra gente, ou a gente lançava o disco do jeito que o disco era, do jeito que a gente queria, ou a gente largava a banda e voltava pra faculdade. Não era uma opção refazer o disco com outro produtor depois de ter passado seis meses bolando o disco, de ter feito arranjos com tanto carinho, e o disco na verdade é um registro de momentos. Você não vai recuperar os momentos. Ia ter que gravar outro disco. E a gente não ia fazer outro naquele momento. A gravadora só é um dos alicerces responsáveis por manter isso. A banda tem que ser muito mais forte que o mercado, que a gravadora, do que rádio... pra isso, tem que ser perseverante, gostar do que faz... ser inteligente pra buscar alternativas pra isso, pra tocar.

Então, como fica a situação da banda?

MC: A gente precisa achar um meio termo, pra bancar nossa estrutura mais ou menos sem precisar de um apoio total da gravadora, porque a gravadora vai apoiar quando ela sentir que o disco tá pro lado dela, quando ela sentir que o disco é fácil, que ela não vai precisar se empenhar muito. Durante muito tempo a gente teve muita raiva da Abril, uma coisa meio adolescente, de quem tá entrando no mercado, e a nossa visão hoje em dia é um pouco mais serena em relação a isso. A gente viu que a Abril é parte de uma coisa maior. Quem manda é a grana mesmo, sabe? Quem vai dar mais grana é quem vai estar por cima da carne seca. Só que quem vai dar mais grana hoje pode ser quem não vai dar grana amanhã. Eu só acho muito burra mesmo essa falta de preocupação com o futuro. Uma gravadora que trabalha procurando artistas que vão estourar a cada três quatro meses, passar um ano sem encontrar um artistas desses, se houver no mercado um lapso de artistas de vendam um milhão de cópias, a gravadora acaba, né? “Cadê Teu Suin” (faixa de “Bloco do Eu Sozinho”) fala muito sobre isso. (...) Esse negócio de música de trabalho, que é uma das coisas mais cruéis que se pode fazer com um artista que é pegar o disco dele e resumir o disco a uma coisa só. De tomar o todo pela parte. Mas isso é só o mercado.

Segunda opinião: A crise é o decreto de que algo não vai bem com o mercado como o conhecemos, é a falência de um formato de gerir as coisas. No momento, parece estar se delineando um meio termo, como Marcelo Camelo procura, para acomodar os artistas. Com a palavra, a baixista e vocalista Simone do Valle, do Autoramas:

- Antes da nossa geração, banda que prometia e não estourava no segundo disco acabava, brigava, era chutado da gravadora. Hoje a gente vê Bidê ou Balde, Penélope, Autoramas. Los Hermanos, Matanza, Video Hits... formar um bonde intermediário, sem sentido pejorativo, porque custa muito sobreviver nesse mercado das múmias. Era pra ter mais banda nessa jogada, era pro underground inteiro estar nessa, forçando a barra, metendo o pé na porta. Afinal, a gente veio daonde? Cogumelo Plutão, Surto, Tihuana, Superfly... essas não vieram do mesmo lugar que a gente. Ter ou não ter um hit na rádio não impede ninguém de nada. O público existe, e está aí. As casas de shows existem. É só ter vontade de trabalhar duro porque jabá nenhum desse mundo garante nada pra banda merda. O Surto que o diga. Cadê o Surto? Mas eu sei aonde estão os Hermanos, aonde a gente está, aonde está o Penelópe... ahá!



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no.com.br, 22 de Janeiro de 2002
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Tom Wolfe por inteiro


Na capa da edição americana de “Ficar ou não ficar” (“Hooking Up”), o título do livro foi omitido, surgindo apenas o nome de seu autor-vedete em letras vermelhas e garrafais contra um fundo amarelo-ovo: naturalmente, um
lembrete ao leitor de que está prestes a entrar no universo histérico de Tom Wolfe. Os exageros do escritor não costumam vir desacompanhados de uma compensação à altura: desde “The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby”, de 1965, aos best-sellers “Fogueira das Vaidades”, de 1987, e “Um homem por inteiro”, de 1998, o que se espera de um livro de Wolfe é uma crônica da sociedade americana feita por um observador atento que disseca seu assunto (a vítima) com um riso cínico na boca. Como parece ser praxe em qualquer evento envolvendo Wolfe, houve quiproquó acerca deste lançamento também. Desta vez, a reclamação não foi exatamente contra seu estilo hiperbólico. Os ataques concentraram-se em seu ego. A fatia da crítica americana mais inclinada à paranóia viu-se tentada a julgar este livro pela capa: Wolfe foi acusado de usar o prestígio acumulado há 13 livros e mais de trinta anos de carreira, para vender um produto que não corresponde à
expectativa criada por seu rótulo. A marca registrada “Tom Wolfe” estaria, portanto, fazendo na capa de “Ficar ou Não Ficar” uma propaganda enganosa de um texto que está muito abaixo do potencial sugerido pelo letreiro. “O nome do autor transcendia a obra”, yada yada yada, daí pra baixo.

A capa da edição brasileira (Rocco) é preta, com os títulos TOM WOLFE em branco no alto e o nome do livro em destaque vermelho e preto embaixo, o que talvez permita divagações tão criativas à crítica nacional quanto as que foram produzidas pelos colegas americanos. Para fazer esse jogo, eu poderia dizer que Wolfe é um narcisista (o que não estaria muito longe da verdade) indeciso entre permanecer um torcedor do Botafogo (repare na predominância alvi-negra na parte superior da capa) e virar casaca em prol do Mengão (vermelho e preto no título), e este comentário teria tanta consistência quanto as afirmações do setor mais chatinho da crítica americana. Mas a verdade é que existe qualidade no que encontramos entre a tão falada capa e sua não menos controversa contracapa – esta também ganhou comentários maldosos, por trazer uma foto de Wolfe de corpo inteiro (quando o normal é o autor aparecer apenas dos ombros para cima) em seu costumeiro, mas nunca fácil de engolir, terno branco. Como um dos alvos preferidos de Wolfe sempre foi a superficialidade do comportamento humano, ele deve ter se divertido um bocado lendo esses ataques. E seu ego, com certeza, agradeceu a confirmação de suas suspeitas sobre os partidários dos “rococós”.

A edição de “Ficar ou Não Ficar” lançada pela Rocco no Brasil corresponde a 250 páginas de ensaios e jornalismo que carregam a marca da maldição de Wolfe: extravagância, auto-referência e pontos de exclamação. Seria um trinômio do qual se poderia escarnecer, não estivesse combinado com wit, um senso de humor irresistível e a forte curiosidade que empurra o escritor para o fundo de cada história, de onde ele emerge trazendo mais que relatos distantes, acena com uma experiência. Wolfe é grande fã do naturalismo de Émile Zola (“Zola era um repórter extraordinário”, como explica em “O País dos Marxistas Rococós”) e dedica algumas páginas ao estilo e suas variações mais radicais: vê no romance com base jornalística a única saída para a literatura norte-americana, que considera morta desde 1972. Neste ano, anunciou em artigo para a revista “New York” o nascimento do New Journalism como um antídoto para a atrofia da literatura norte-americana. Em “Ficar ou Não Ficar”, Wolfe volta a bater nesta tecla. Para ele, a modorra da esmagadora maioria dos romances americanos, e seu subseqüente fracasso de vendas, é conseqüência do ar viciado que respiram seus autores, que nunca deixam seu próprio círculo; um escritor que não observa a vida à sua volta está desperdiçando sua carreira (é preciso “sair de sua própria experiência pessoal a fim de obter material para seus romances”). Ou seja, histórias claustrofóbicas sobre casais de escritores que jamais saem de casa não são exatamente a idéia de Wolfe sobre um romance. E ele deixa isso bem claro quando ataca, armado até os dentes com números e pesquisas, três dos maiores nomes da literatura americana contemporânea: John Updike, Norman Mailer e John Irving. Ou melhor: Larry, Curly e Moe, os Três Patetas do capítulo VITA ROBUSTA, ARS ANOREXICA. Wolfe cita as vendagens de proporções astronômicas de seu romance “O homem por inteiro” para refutar observações maldosas (até raivosas) feitas pelos três autores contra seu best-seller, além reivindicar um lugar no Olimpo literário ao lado de Honore de Balzac e Charles Dickens, aboletando-se lá como mais um escritor genial aceito pelo público. A picuinha entre Wolfe e Irving, Updike e Mailer esquentou em Janeiro de 2000. Em entrevista concedida a um programa de TV canadense, ele respondeu a provocações dos três com pesada artilharia que antecipava o bombardeio perpetuado em “Ficar...”. Wolfe mordeu de um lado e soprou de outro: “Sou um admirador de Douglas Coupland (autor de “Geração X”), que eu acho que é uma das mais vivas, excitantes vozes da literatura moderna”, explicou, “então, não estou aqui sentado dizendo que a coisa só pode ser feita do meu jeito”.

Ele pode ser egocêntrico mas não se pode chamá-lo de incoerente; pelo menos não no que diz respeito à rixa contra a escrita encruada. Uma das seções mais hilárias do livro é o perfil que Wolfe escreveu sobre o recluso editor da revista “New Yorker” em 1965, William Shawn. Pode-se dizer que aquele foi o primeiro round da luta de Wolfe contra a rigidez e a falta de imaginação de alguns padrões literários. Em “O Caso New Yorker”, ele usa seu histrionismo para combater e ridicularizar um formato que desprezava: o da revista “New Yorker”.

“Depois da guerra, os subúrbios das grandes cidades americanas começaram a se encher de mulheres instruídas com casas grandes, maridinhos sérios e gosto para... comprar coisas caras. A ‘New Yorker’ era mais ou menos a única revista geral que elas ouviam os professores mencionarem de uma... maneira cultural boa. E de repente elas descobriram (...) que essa revista (...) estava falando diretamente pra elas. (...) ter essa revista em casa já é um símbolo, uma espécie de distintivo.”

Wolfe sabia bem que nervo estava atingindo quando escreveu isso. Nada poderia soar mais distante do projeto do fundador da revista, Harold Ross, que uma publicação dedicada às donas de casa suburbanas. E qualquer ofensa ao projeto original de Harold Ross causava terror absoluto em William Shawn, o editor que se negara a colaborar com o repórter para um perfil (vendetta). É possível confiar em Wolfe após a leitura desta parte do livro. Seus exageros parecem menos lunáticos quando somos lembrados dos livros sobre a “New Yorker” que passaram a pulular no mercado a partir da década de 90. Em alguns deles, as mesmas ex-estrelas da “New Yorker” que negaram as histórias contadas na matéria de Wolfe em 1965 aparecem confirmando tudo que ele tinha escrito sobre a revista e lhe rendeu alguns processos por calúnia na época. O capítulo é leitura obrigatória para jornalistas e escritores. E leitores da ‘New Yorker’.

O fato de o olho de Wolfe estar arregalado quase estritamente sobre a cultura e o comportamento norte-americanos não deve servir de empecilho para o leitor brasileiro: não é difícil relacionar-mo-nos com temas como a sexualidade precoce e a cultura do corpo quando qualquer festinha de playground e banca de jornal brasileiros podem provar que enfrentamos questões semelhantes; em um mundo conectado por TV a cabo e Internet, o que as gerações futuras irão saber sobre hoje? O livro de Wolfe procura responder a esta pergunta concentrando-se em algumas das mais recentes obsessões do autor, ligadas a temas quentes contemporâneos como os avanços tecnológicos, o crescimento do Vale do Silício, hipersexualização, literatura, entre outros. Quem conhece o trabalho de Wolfe sabe que não deve temer um relato burocrático sobre as novas invenções dos magos da informática, considerações arrastadas sobre arte, lampúrias da terceira idade acerca de como os mais jovens vêm praticando o antigo esporte nem idiossincrasias fundamentadas tão-somente nas achâncias do autor sobre o suposto “fim” da alma e a neurociência (em “Digibesteiras, pó de pirlimpimpim e o formigueiro humano”, com destaque para a história hilária sobre Wolfe levando Marshall McLuhan para almoçar em um strip club). Sobre este último assunto, aliás, ele critica, com os pés no chão, teorias cada vez mais populares que se sustentam por analogias sem base científica alguma, mas estão prestes a tornarem-se dogmas.

“Ficar ou não ficar” é Wolfe reconstituindo cenas e contando histórias com a extravagância e a espirituosidade do sujeito mais popular da festa, aquele que prende todo mundo à sua volta mexendo um uisquinho com gelo e fazendo rir. Mesmo que o seu terno branco pareça um pouco desgastado agora que possui uma cabeça repleta de cabelos brancos para combinar, Wolfe ainda tem uma ou duas coisas interessantes para dizer sobre a época em que vivemos.

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no.com.br, 31 de Janeiro de 2002

Benjor para 70 (+ 1)


“Tá com a credencial?”

com as roupas

“Só pode entrar com credencial...”

e as armas

“Desculpa, mas eu tenho ordem pra não deixar ninguém entrar sem credencial”.

De Jorge

A maioria desses eventos (gravações de acústicos para a MTV, por exemplo) são feitos para vips: artistas, jornalistas com alguns anos de estrada e funcionários - alto e médio escalão - de gravadora. Por isso, poucos, pouquíssimos eventos fechados inspiram coragem para arriscar com a segurança. Um show acústico de Jorge Bem (Benjor, para algumas correntes mais pra frentex) vale o perrengue. Claro que havia o risco de arranjos modernosos terem destruído completamente os clássicos mas, ainda assim…

Sem credencial, convite, passe, crachá ou nome na lista, o jeito era adotar o modus operandi infantil (ou dar uma de doido, tanto faz): quero doce - doce atrás do balcão - entro balcão - pego doce. Pagar no caixa, fazer o pedido, entregar a ficha que comprova que paguei o doce isso são coisas que não existem diante do desejo puro de comer brigadeiro; a ação é cega. “Sou da produção”. Entrei sem pedido, caixa, balcão. Balcão não: os dois armários que ficavam na porta do estúdio.

“Credenc…”

Que meus inimigos tenham olhos e não me vejam

Já dentro do Pólo de Cinema e Vídeo, bateu uma felicidade de mendigo em chafariz: refresca mas qualquer hora chega a polícia. Só que Jorge da Capadócia protege as crianças, os bêbados e os penetras. Sendo assim, todo penetra pode contar com pelo menos uma benção: é que, via de regra, seguranças têm medo de ouvir como resposta um você sabe com quem está falando? e estar, de fato, falando com o tio do dono da festa, a irmã do chefe de polícia ou a namorada do diretor do programa. De modo que perturbar demais um potencial (“Por que não seria...? O que entrega que ele não devia estar aqui?”) convidado é um risco que os homens de preto costumam evitar.

De camisa laranja, calças curtas e tênis, Jorge chega para passar o som. Pouco antes, Seu Nenén, da cozinha da banda do Zé Pretinho, havia benzido o palco (“Dá licençaaaa...”) Outros membros da banda tomam posição, assim como a orquestra ao fundo do estúdio, regida por Lincoln Olivetti. Um fotógrafo me conta que no teste de iluminação do dia anterior, Jorge tinha se recusado a tirar o boné. “Mas tá dando uma sombra…” Não, o boné não sai, se não for assim não é. Hoje deixou disso, veio sem boné e de bom humor. Léo Gandelman, na sessão de metais, convoca Jorge para uma disputa, fazendo com que ele respondesse aos agudos do sax com a voz. A coisa persiste até um iiiiii prolongado e aí passam “Mas Que Nada”, “Jorge da Capadócia” e a inédita “Dá Licença” com a banda do Zé Pretinho, sendo que “Jorge da Capadócia” é tocada três vezes e, a cada uma, Jorge altera o final, prometendo
versões pouco rígidas para o acústico. Enquanto eu dançava em um canto do estúdio, minha credencial invisível chamava atenção balançando no ar. E eu na paranóia, achando que todos os seguranças podiam ver que ela não estava ali.

Por volta de 20h30, abrem o estúdio aos convidados. Poucos vips, de diferentes estirpes: Branco Mello, João Suplicy, Lídia Brondi, a turma de comediantes do programa Hermes & Renato, da MTV, Paulinho Moska. E a casa não lota; provavelmente quem faltou hoje vai aparecer na entrada do estúdio no dia seguinte, dando algum trabalho extra para a produção – amanhã a banda se reúne novamente no estúdio para tocar durante uma hora posando para fotos que serão usadas no material gráfico do lançamento, além de refazerem algumas passagens em que as imagens ficaram comprometidas como, por exemplo, quando o Nenén improvisou e sambou diante de Jorge, e um violão caiu no palco.

Pouco tempo depois, a VJ da MTV Marina Person anuncia a entrada de Jorge. Na primeira parte do show, ele é acompanhado pela Admiral Jorge V em formação original com João Vandaluz no piano, Gustavo Schroeter na bateria e Gordinho e Joãozinho na percussão. Dadi, no baixo, e Marçalzinho, filho de Mestre Marçal, na percussão, completam o time. Nos backing vocals, o trio Golden Boys canta rindo pro público e dançando de sapato bicolor e gravata fininha.

A gravação começa com “Jorge da Capadócia”. Na seqüência, “Roberto Corta Essa”, emendada à “Ponta de Lança Africano”, que repetem a pedido do diretor. Seguem “Balança Pema”, “Comanche”, “Bananeiro” (também repetida), “O Circo Chegou”, “Ive Brussel”, “O namorado da Viúva”, “Minha Teimosia, Uma Arma Pra Te Conquistar”, “Take It Easy My Brother Charles”, e “Zazueira” .

Suspeito que a produção de endorfina esteja modesta entre as cinco fileiras de cadeiras dispostas ao redor do palco. Sacundim sacundém é som pra mais animação que aquilo. Se há alguma coisa de errado com a decisão de fechar os acústicos da MTV em um cercado para vips e jornalistas é que a platéia acaba se revelando... uma platéia de vips e jornalistas. Que não são, necessariamente, sempre os maiores fãs do artista no meio do palco.

Para a segunda parte do show, uma troca de banda: Sai Admiral Jorge e entra Zé Pretinho, composta pelo piano de Lourival Costa, bateria de Eduardo Helbourn, baixo de João Lucrécio e cuíca de Nenén. O set traz “Mas que nada”, “Por causa de Você/Chove Chuva” , “ Que maravilha”, “Menina Mulher da Pele Preta", emendada em "Telefone”, “ Denise Rei" e "Que Pena” juntas, “País Tropical" e "Spyro Gyro” , “W/Brasil”, “ Os Alquimistas” , “ Fio Maravilha”, “Dá Licença”, fechando com “Taj Mahal”.

Ausência sentida: ficou faltando “Charles Anjo 45” que, na terça, 29, eles haviam ensaiado.

Pausa para reflexão: suponhamos que você aí, leitor, é hoje, em 2002, diretor artístico de uma gravadora multinacional que tem no elenco um trio de loiras dançarinas batuqueiras da derrière tornada exuberante por meio de avanços tecnológicos; tem lá também sua banda de rock que vende bem usando o mesmo acorde de Hendrix em todas as suas músicas; um medalhão que vende um milhão de cópias por ano. Essas coisas, entendeu? Então, faz de conta que você, leitor, é esse cara. E aí aparece hoje em seu escritório um rapaz cismado em cantar “ voXe”, com X, ao invés de “você” com C. E que também escreve umas letras sobre plâncton, “um bichinho verde que dá na água” e alquimistas que dispensam a companhia de pessoas de temperamento sórdido. Ele tem uma batida de violão que às vezes parece quebrar a música toda. Ele tem uma música que, também cismou, quer gravar metade fazendo voz de fanho e cortando as sílabas das palavras: “mó num pa-tro-pi...”. Tem muita coisa “dançante” no repertório dele mas... parece invenção demais. O leitor pediria que o cavalheiro do você com X e da batida “errada” e dos planctons assinasse na linha pontilhada para gravar um disquinho ou diria que não está interessado? Coisas estranhas que pensamos rememorando ao vivo velhos hits geniais depois de um dia inteiro testando o dial em busca de qualquer som novo que desobstrua artérias.

O que Jorge acha dos sons novos? Um comentário dele no backstage talvez esclareça: “A única coisa que eu acho chata hoje em dia é que falta música pra dançar colado”.

Jorge cumpriu a promessa insinuada na passagem de som e alterou os finais das músicas: prolongou algumas, revirou a letra em outras, quebrou e requebrou versos sem que, com isso, deixasse sua banda em maus lençóis ou desorientasse os backing vocals. E, seja lá o que for que não tenha saído perfeito (a voz de Jorge que sumia, naturalmente, por segundos, quando ele desviava a boca do microfone ao olhar o braço do violão, por exemplo), será consertado em estúdio depois.

A MTV registrou o acústico do inventor e único executor da Jorge Ben Music - sambalanço misto de maracatu samba de pretutu com rock e blues e soul e funk - que, de 63 até hoje, nunca deixou de soar inovadora. Eu nunca ia me perdoar se não tivesse ido só porque os convites esgotaram. Convite é o tipo de frescura que não combina com o Simpático.



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