"É com esse que eu vou casar", teria dito, se vivesse num século em
que o matrimônio era norma vigente. Num movimento automático, todo
tenso, vestiu a camisa branca que trazia como saída-de-praia. Mas não
ia embora, não podia ir. A prudência de esconder o busto e o estômago
não partia de natureza excessivamente pudica e, portanto, deslocada
no tempo: reconhecia, com certo constrangimento e pesarosa derrota, a
defasagem de seu corpo em relação aos das outras mulheres que tomavam
sol ali pelo Posto Nove.
Não, não conseguia ir embora. Tinha visto um cara, um rosto, um
estranho - talvez ele carregasse jeitos de outros amores, tatuagens
parecidas, curvas de músculos que ela conhecia do passado - precisava
ficar e descobrir o que era. Por que prestar atenção nele, naquele
rapaz específico, quando a praia estava cheia de infinitas
possibilidades, várias delas até menos díspares, mais adequadas aos
seus trin-ta-e-cin-co anos? A pele e a turma em volta dele
denunciavam um final de adolescência; podia ser que vinte, podia ser
que 18. E aí a balzacona, a véia não podia nem rir sozinha com a
clássica "eu podia ser mãe dele", porque nem isso: ela já tomava
pílula quando ele nasceu! Escândalo, derrota, saída-de-praia,
benzadeus esse menino. Ficou olhando.
Ele jogou frescobol, apertou um senhor baseado, fumou, mergulhou,
voltou se sacudindo como cachorro, levantou um dedo pra pedir Skol,
dormiu de bruços, virou de lado, acordou, bebeu outra Skol. Foi
interrompido pelo celular em todas as etapas enumeradas. Sua galera
finalmente deu sinais de que ia levantar acampamento e ele ficou de
pé com as quatro tanajuras sem celulites (uma incrível vantagem) e o
magrelo espinhento de cabeça raspada que parecia ser disputado por
três delas. Mas despediu-se. Voltou a se sentar na areia assim que o
grupo deu as costas pro mar. Ela precisava ficar ainda e ver que ele
era daqueles neo-hippies aloprados que batiam palmas pro pôr-do-sol e
ir pra casa tranqüila, guardando menos rancores por conta das suas
irreparáveis diferenças. Mas o rapaz, o guri, o MOLEQUE puxou da
bolsa de pano um caderno e começou a rabiscar qualquer coisa. O
clap-clap pro sol começou às sete e ele não largou a caneta pra
aplaudir. "Deve ser a lição de casa", ela pensou, sabotando com
material de seu próprio pocinho fundo de cinismo o interesse que
tinha por aquelas folhas de papel. A auto-sabotagem é uma arma fina e
feminina, sacada sempre que a imunidade da fêmea defasada é abalada
por algo desconhecido e embasbacante de tão bonito. Porque ele era
bonito. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto e nem devia
ser tão belo assim: esses eram os piores casos. Achar perfeito o que
não é perfeito, reconhecer que um nariz é torto, que um par de
orelhas são de abano - não que a figura dele combinasse tais exatas
caracteísticas - e ainda assim ser capaz de afirmar beleza no
erro... lembrou My Funny Valentine, doce, cômico,
engraçado, o rosto menos que grego e que era assim que as coisas
começavam, embora ali estivesse na cara que nada ia acontecer. E
arrematou a sabotagem lembrando que, se standards já eram
antigos quando ela tomava pílula e ele nascia, hoje era ridículo
lembrar que eles existem.
Enquanto o guri, o MOLEQUE nascia, ela comprava entrada pra ver o
AC/DC no Rock In Rio I (UM!). Enquanto o rebento vinha ao mundo, ela
perdia a virgindade com um amigo do irmão no estacionamento das Casas
da Banha (rede de supermercados extinta). Enquanto uma incauta
expelia o resultado dum espirro de pica gosmento que, ninguém
apostaria, ia se tornar a coisa mais bonita que a coroa já tinha
visto, a coroa tinha uns 15 anos e dava mais que chuchu na serra.
Naquela época, aliás, a expressão "dava mais que chuchu na serra" era
nova. Búzios não estava tão cheio de argentinos, Ipanema não tinha
livraria com café 24h, o tráfico limitava-se a vender as paradinhas
sem grandes conflitos e era isso aí. "Roque Santeiro" era estréia,
não reprise, e Michael Jackson vendia disco. É, DISCO, vinil, que CD
só chegou muito tempo depois. Era melhor nem pensar.
E, no entanto, desde que bateu os olhos no moreno, seus dentes não
cabiam mais dentro da boca. Só fazia rir. E tinha medo que aquilo
acentuasse os vincos que ressentia no rosto, que externasse o óbvio:
que era uma velha, uma velha cheia de graça pra cima dum garotinho.
Um resto de sol apontava firme na linha dos seus olhos e isso fazia
com que risse mais que o riso espontâneo - espremia um pouquinho a
vista pra evitar os últimos raios alaranjados e ver o menino. O
menino tinha se levantado e, agora, virado pra ela, continuava a
rabiscar. Não podia ser uma coisa dessas; devia estar esperando o
cara da Skol virar também pra pedir mais uma. Não podia ser que
andava na direção dela. Apertou mais os olhos e viu, sem controle,
sem querer, veias debaixo do short de tac-tel - viu, dentro dos
próprios olhos ainda pintados de resto de sol, porque quase não podia
enxergar fora da própria cabeça naquele momento. Porque era crucial:
a beleza caminhava decidida a encontrá-la. E era um farrapo, ela, um
farrapinho de trin-ta-e-cin-co anos, AC/DC, Roque Santeiro, vinil.
Terrível! Ajoelhou do lado dela.
Se pudesse ter fixado os olhos em qualquer ponto, sem o nervosismo
que a fazia piscar como um estrobo descoordenado, teria definido à
sua frente as coxas retesadas, um risco fundo em cada lateral, um
peito com pêlos certos de uma cor não definida entre o castanho e o
loiro, tatuagens de outros tempos talvez. Não viu nada disso. Ouviu:
- Oiii. Desculpa eu ficar olhando, mas é que.
- Oi! (num fode)
- Tudo bem? É que eu queria te desenhar.
Num fode.
- Por quê?...////...///?!...///
- Desculpa, eu sou meio cara-de-pau. Mas tenho que ser porque às
vezes eu vejo alguém na rua, bate uma idéia... Eu estudo Belas Artes.
Queria te desenhar.
- Por quê?
- Sabe Gustav Klimt?
Sabia Klimt. Talvez ele soubesse My Funny Valentine. Tudo era
possível agora.
- Tô fazendo uma aula de art nôvô. Você parece a Judith, tem uns dois
quadros dele com esse nome, uma mulher.. eu podia fazer uma Judith na
praia, biquíni aceso, os prédios atrás. Ia ficar muito doido. Podia
meter serigrafia, Warhol, alguma coisa em cima disso, misturar tudo.
Judith era o nome da avó de alguém, meter em cima e misturar tudo uma
puta idéia. Fumaram. Aparentemente, o MOLEQUE tinha um peso inteiro
dentro da bolsinha de pano, e seda, tinha seda, não precisavam pedir
pra ninguém nem incorporar desconhecidos ao ritual, embora alguns
resistentes do pós pôr-do-sol estivessem de olho grande pro baseado
deles. Na praia, horário de verão, céu claro às 19h, ainda fica uma
penca de gente seca por um baseado. Um maluco e outro calibrando pra
naite, insistindo na fiscalização dos últimos biquínis. Às vezes,
rola um showzinho em palco improvisado ou mesmo sem palco, na areia
da praia mesmo, com eletricidade puxada dos quiosques do calçadão.
Não era o caso naquele fim de dia. Não tinha nem mesmo um péla-saco
tocando violão. Só ela, o menino e uns desocupados perdidos
espalhados desencanados. Riram tanto, conversaram, descobriram
afinidades e um monte de coisa nadavê entre os dois que, por se
comunicarem com o que parecia ser uma curiosidade mútua um pelo
outro, funcionavam exatamente como as afinidades - ou seja, como
ponto de apoio, não de desestabilização do contato. E ele ainda
queria desenhar.
- Mas fica melhor sem a blusa.
Posou abraçando os joelhos, mas de um jeito descontraído. Trocaram
e-mails, esperava receber dele um esboço nos próximos dias ou, quem
sabe, o produto final daquela tarde estranha.
- Você me escreve?
- Escrevo. Valeu, Judith.
- Eu que agradeço, Klimt. - deixou um sorrisão vincar-lhe os cantos
da boca. O garoto deu-lhe um beijo no rosto. Ela não dormiu naquela
noite.
Era ridículo ir para o trabalho de olheiras por causa daquilo.
Levantou-se da cama sem ter repousado, alimentou o gato, tomou banho
quente, limpou a caixa do gato, vestiu-se, beijou o gato entre as
orelhas, fechou a porta e saiu. Foi assim de segunda a sexta-feira,
as bolsas debaixo dos tornando-se cada dia mais escuras. E nenhum
e-mail.
O risco-país aumentou por causa da possibilidade do candidato da
opisção à presidência ganhar as eleições. Uma possibilidade, entre
tantas outras, projetava-se do futuro para o presente e altera esse
presente, fazendo o mercado tremer. Saiu da página de economia e leu
o horóscopo. "Faça um acordo com o Tempo: você deseja as coisas e
elas vão acontecer, se você fizer todo o possível para isso. Mas só
quando Ele decidir. Paciência." Tinha, e muita; precisava recordar os
lábios grossos, a expressão dos olhos enquanto desenhava, o jeito
como a estudava, a vitória de ter sido escolhida para o retrato entre
tantas mulheres naquela praia imensa e superlotada. Queria eliminar
as preocupações que causavam o fato de ele ainda não ter enviado
e-mail algum com qualquer retrato. Tinha que confabular com o
horóscopo e fazer as coisas acontecerem. E, mesmo com todos esses
afazeres mentais de extrema importância, precisava escrever sua
coluna sobre a repercussão das pesquisas eleitorais no mercado.
Ignorou o burburinho nas outras baias ao redor da redação e começou:
"É preciso negociar com o Tempo..." Sua opinião era de extrema
importância para que as pessoas tivessem paciência. O futuro devia
ser abandonado à frente, enquanto as mentes ansiosas que especulavam
sobre ele fizessem o caminho de volta ao presente para vivê-lo sem a
restrição a uma única possibilidade. "Tudo é possível agora mas, se
projetamos as expectativas num só acontecimento, paralisamos o
presente. É provável mesmo que o capital produtivo e sua correia de
transmissão - investimentos, ampliação, produção, serviços, empregos,
salários, encargos, tributos, confiança e futuro - sofram com um
arrocho após a eleição. A vitória do candidato representa um risco de
ruptura, pois os governos de seu partido pelo país sustentam um
histórico de apoio às invasões e quebras de contrato (vide o caso do
Rio Grande do Sul). O mercado é resultante da razão e ação de 6
bilhões de pessoas, de modo que, quando o risco-país aumenta,
sinaliza receios e incertezas. Portanto, investir por aqui com a
possibilidade de ele vencer, é arriscado. Para atrair capital e
investimento teremos que pagar mais. O risco-país é a realidade que
vem do futuro e temos que estar preparados para encará-lo." O
garoto-do-futuro, Marty McFly agora com Parkinson, tinha 24 anos
quando fez papel de um adolescente em "De volta para o futuro", filme
de 1985. Não parecia velho.
A única probabilidade interessante era encontrar Klimt na
praia. Seu nome era Beto (não sabia se de Roberto, Alberto ou
Humberto) e Judith, ou Ana Maria Chávez, não tinha mais paciência
para explicar ao país que era preciso correr riscos. Escreveu,
portanto, apenas: "É preciso correr riscos".
Sua coluna estava pronta, não se incomodou em revisar. Não releu mais
que o primeiro parágrafo. Pegou a bolsa e saiu perseguindo Ipanema. Era uma sexta-feira e a praia estava cheia das pessoas que gozavam de férias no verão. Fugir da redação no meio do expediente era uma realização gostosa, perturbada apenas pela incerteza do paradeiro do garoto entre o mar de bundas que inundava a areia.
que o matrimônio era norma vigente. Num movimento automático, todo
tenso, vestiu a camisa branca que trazia como saída-de-praia. Mas não
ia embora, não podia ir. A prudência de esconder o busto e o estômago
não partia de natureza excessivamente pudica e, portanto, deslocada
no tempo: reconhecia, com certo constrangimento e pesarosa derrota, a
defasagem de seu corpo em relação aos das outras mulheres que tomavam
sol ali pelo Posto Nove.
Não, não conseguia ir embora. Tinha visto um cara, um rosto, um
estranho - talvez ele carregasse jeitos de outros amores, tatuagens
parecidas, curvas de músculos que ela conhecia do passado - precisava
ficar e descobrir o que era. Por que prestar atenção nele, naquele
rapaz específico, quando a praia estava cheia de infinitas
possibilidades, várias delas até menos díspares, mais adequadas aos
seus trin-ta-e-cin-co anos? A pele e a turma em volta dele
denunciavam um final de adolescência; podia ser que vinte, podia ser
que 18. E aí a balzacona, a véia não podia nem rir sozinha com a
clássica "eu podia ser mãe dele", porque nem isso: ela já tomava
pílula quando ele nasceu! Escândalo, derrota, saída-de-praia,
benzadeus esse menino. Ficou olhando.
Ele jogou frescobol, apertou um senhor baseado, fumou, mergulhou,
voltou se sacudindo como cachorro, levantou um dedo pra pedir Skol,
dormiu de bruços, virou de lado, acordou, bebeu outra Skol. Foi
interrompido pelo celular em todas as etapas enumeradas. Sua galera
finalmente deu sinais de que ia levantar acampamento e ele ficou de
pé com as quatro tanajuras sem celulites (uma incrível vantagem) e o
magrelo espinhento de cabeça raspada que parecia ser disputado por
três delas. Mas despediu-se. Voltou a se sentar na areia assim que o
grupo deu as costas pro mar. Ela precisava ficar ainda e ver que ele
era daqueles neo-hippies aloprados que batiam palmas pro pôr-do-sol e
ir pra casa tranqüila, guardando menos rancores por conta das suas
irreparáveis diferenças. Mas o rapaz, o guri, o MOLEQUE puxou da
bolsa de pano um caderno e começou a rabiscar qualquer coisa. O
clap-clap pro sol começou às sete e ele não largou a caneta pra
aplaudir. "Deve ser a lição de casa", ela pensou, sabotando com
material de seu próprio pocinho fundo de cinismo o interesse que
tinha por aquelas folhas de papel. A auto-sabotagem é uma arma fina e
feminina, sacada sempre que a imunidade da fêmea defasada é abalada
por algo desconhecido e embasbacante de tão bonito. Porque ele era
bonito. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto e nem devia
ser tão belo assim: esses eram os piores casos. Achar perfeito o que
não é perfeito, reconhecer que um nariz é torto, que um par de
orelhas são de abano - não que a figura dele combinasse tais exatas
caracteísticas - e ainda assim ser capaz de afirmar beleza no
erro... lembrou My Funny Valentine, doce, cômico,
engraçado, o rosto menos que grego e que era assim que as coisas
começavam, embora ali estivesse na cara que nada ia acontecer. E
arrematou a sabotagem lembrando que, se standards já eram
antigos quando ela tomava pílula e ele nascia, hoje era ridículo
lembrar que eles existem.
Enquanto o guri, o MOLEQUE nascia, ela comprava entrada pra ver o
AC/DC no Rock In Rio I (UM!). Enquanto o rebento vinha ao mundo, ela
perdia a virgindade com um amigo do irmão no estacionamento das Casas
da Banha (rede de supermercados extinta). Enquanto uma incauta
expelia o resultado dum espirro de pica gosmento que, ninguém
apostaria, ia se tornar a coisa mais bonita que a coroa já tinha
visto, a coroa tinha uns 15 anos e dava mais que chuchu na serra.
Naquela época, aliás, a expressão "dava mais que chuchu na serra" era
nova. Búzios não estava tão cheio de argentinos, Ipanema não tinha
livraria com café 24h, o tráfico limitava-se a vender as paradinhas
sem grandes conflitos e era isso aí. "Roque Santeiro" era estréia,
não reprise, e Michael Jackson vendia disco. É, DISCO, vinil, que CD
só chegou muito tempo depois. Era melhor nem pensar.
E, no entanto, desde que bateu os olhos no moreno, seus dentes não
cabiam mais dentro da boca. Só fazia rir. E tinha medo que aquilo
acentuasse os vincos que ressentia no rosto, que externasse o óbvio:
que era uma velha, uma velha cheia de graça pra cima dum garotinho.
Um resto de sol apontava firme na linha dos seus olhos e isso fazia
com que risse mais que o riso espontâneo - espremia um pouquinho a
vista pra evitar os últimos raios alaranjados e ver o menino. O
menino tinha se levantado e, agora, virado pra ela, continuava a
rabiscar. Não podia ser uma coisa dessas; devia estar esperando o
cara da Skol virar também pra pedir mais uma. Não podia ser que
andava na direção dela. Apertou mais os olhos e viu, sem controle,
sem querer, veias debaixo do short de tac-tel - viu, dentro dos
próprios olhos ainda pintados de resto de sol, porque quase não podia
enxergar fora da própria cabeça naquele momento. Porque era crucial:
a beleza caminhava decidida a encontrá-la. E era um farrapo, ela, um
farrapinho de trin-ta-e-cin-co anos, AC/DC, Roque Santeiro, vinil.
Terrível! Ajoelhou do lado dela.
Se pudesse ter fixado os olhos em qualquer ponto, sem o nervosismo
que a fazia piscar como um estrobo descoordenado, teria definido à
sua frente as coxas retesadas, um risco fundo em cada lateral, um
peito com pêlos certos de uma cor não definida entre o castanho e o
loiro, tatuagens de outros tempos talvez. Não viu nada disso. Ouviu:
- Oiii. Desculpa eu ficar olhando, mas é que.
- Oi! (num fode)
- Tudo bem? É que eu queria te desenhar.
Num fode.
- Por quê?...////...///?!...///
- Desculpa, eu sou meio cara-de-pau. Mas tenho que ser porque às
vezes eu vejo alguém na rua, bate uma idéia... Eu estudo Belas Artes.
Queria te desenhar.
- Por quê?
- Sabe Gustav Klimt?
Sabia Klimt. Talvez ele soubesse My Funny Valentine. Tudo era
possível agora.
- Tô fazendo uma aula de art nôvô. Você parece a Judith, tem uns dois
quadros dele com esse nome, uma mulher.. eu podia fazer uma Judith na
praia, biquíni aceso, os prédios atrás. Ia ficar muito doido. Podia
meter serigrafia, Warhol, alguma coisa em cima disso, misturar tudo.
Judith era o nome da avó de alguém, meter em cima e misturar tudo uma
puta idéia. Fumaram. Aparentemente, o MOLEQUE tinha um peso inteiro
dentro da bolsinha de pano, e seda, tinha seda, não precisavam pedir
pra ninguém nem incorporar desconhecidos ao ritual, embora alguns
resistentes do pós pôr-do-sol estivessem de olho grande pro baseado
deles. Na praia, horário de verão, céu claro às 19h, ainda fica uma
penca de gente seca por um baseado. Um maluco e outro calibrando pra
naite, insistindo na fiscalização dos últimos biquínis. Às vezes,
rola um showzinho em palco improvisado ou mesmo sem palco, na areia
da praia mesmo, com eletricidade puxada dos quiosques do calçadão.
Não era o caso naquele fim de dia. Não tinha nem mesmo um péla-saco
tocando violão. Só ela, o menino e uns desocupados perdidos
espalhados desencanados. Riram tanto, conversaram, descobriram
afinidades e um monte de coisa nadavê entre os dois que, por se
comunicarem com o que parecia ser uma curiosidade mútua um pelo
outro, funcionavam exatamente como as afinidades - ou seja, como
ponto de apoio, não de desestabilização do contato. E ele ainda
queria desenhar.
- Mas fica melhor sem a blusa.
Posou abraçando os joelhos, mas de um jeito descontraído. Trocaram
e-mails, esperava receber dele um esboço nos próximos dias ou, quem
sabe, o produto final daquela tarde estranha.
- Você me escreve?
- Escrevo. Valeu, Judith.
- Eu que agradeço, Klimt. - deixou um sorrisão vincar-lhe os cantos
da boca. O garoto deu-lhe um beijo no rosto. Ela não dormiu naquela
noite.
Era ridículo ir para o trabalho de olheiras por causa daquilo.
Levantou-se da cama sem ter repousado, alimentou o gato, tomou banho
quente, limpou a caixa do gato, vestiu-se, beijou o gato entre as
orelhas, fechou a porta e saiu. Foi assim de segunda a sexta-feira,
as bolsas debaixo dos tornando-se cada dia mais escuras. E nenhum
e-mail.
O risco-país aumentou por causa da possibilidade do candidato da
opisção à presidência ganhar as eleições. Uma possibilidade, entre
tantas outras, projetava-se do futuro para o presente e altera esse
presente, fazendo o mercado tremer. Saiu da página de economia e leu
o horóscopo. "Faça um acordo com o Tempo: você deseja as coisas e
elas vão acontecer, se você fizer todo o possível para isso. Mas só
quando Ele decidir. Paciência." Tinha, e muita; precisava recordar os
lábios grossos, a expressão dos olhos enquanto desenhava, o jeito
como a estudava, a vitória de ter sido escolhida para o retrato entre
tantas mulheres naquela praia imensa e superlotada. Queria eliminar
as preocupações que causavam o fato de ele ainda não ter enviado
e-mail algum com qualquer retrato. Tinha que confabular com o
horóscopo e fazer as coisas acontecerem. E, mesmo com todos esses
afazeres mentais de extrema importância, precisava escrever sua
coluna sobre a repercussão das pesquisas eleitorais no mercado.
Ignorou o burburinho nas outras baias ao redor da redação e começou:
"É preciso negociar com o Tempo..." Sua opinião era de extrema
importância para que as pessoas tivessem paciência. O futuro devia
ser abandonado à frente, enquanto as mentes ansiosas que especulavam
sobre ele fizessem o caminho de volta ao presente para vivê-lo sem a
restrição a uma única possibilidade. "Tudo é possível agora mas, se
projetamos as expectativas num só acontecimento, paralisamos o
presente. É provável mesmo que o capital produtivo e sua correia de
transmissão - investimentos, ampliação, produção, serviços, empregos,
salários, encargos, tributos, confiança e futuro - sofram com um
arrocho após a eleição. A vitória do candidato representa um risco de
ruptura, pois os governos de seu partido pelo país sustentam um
histórico de apoio às invasões e quebras de contrato (vide o caso do
Rio Grande do Sul). O mercado é resultante da razão e ação de 6
bilhões de pessoas, de modo que, quando o risco-país aumenta,
sinaliza receios e incertezas. Portanto, investir por aqui com a
possibilidade de ele vencer, é arriscado. Para atrair capital e
investimento teremos que pagar mais. O risco-país é a realidade que
vem do futuro e temos que estar preparados para encará-lo." O
garoto-do-futuro, Marty McFly agora com Parkinson, tinha 24 anos
quando fez papel de um adolescente em "De volta para o futuro", filme
de 1985. Não parecia velho.
A única probabilidade interessante era encontrar Klimt na
praia. Seu nome era Beto (não sabia se de Roberto, Alberto ou
Humberto) e Judith, ou Ana Maria Chávez, não tinha mais paciência
para explicar ao país que era preciso correr riscos. Escreveu,
portanto, apenas: "É preciso correr riscos".
Sua coluna estava pronta, não se incomodou em revisar. Não releu mais
que o primeiro parágrafo. Pegou a bolsa e saiu perseguindo Ipanema. Era uma sexta-feira e a praia estava cheia das pessoas que gozavam de férias no verão. Fugir da redação no meio do expediente era uma realização gostosa, perturbada apenas pela incerteza do paradeiro do garoto entre o mar de bundas que inundava a areia.