A atriz está usando uma saia longa abaixo do umbigo, deixando à mostra um piercing prateado com jóia pendurada e uma barriga perfeita. O top é decotado e ela afasta os cabelos para trás liberando o caminho para os fotógrafos. A atriz já pulou para o lado perigoso dos 30 e passa a mão esquerda nas minhas costas de um jeito maternal, como se fôssemos amigas durante todos esses anos. Talvez a gente seja porque, de acordo com o que ela me conta, nós todos somos um. Todos nós temos a mesma partícula dentro de nós: as estrelas, as árvores, os animais e todos os seres humanos possuem. A atriz esfrega a mão nas minhas costas e pergunta se eu já li sobre o quark. As luzes apagam e uma voz no alto-falante anuncia que, a partir daquele momento, todos os lugares vagos poderão ser ocupados pelas pessoas que ficaram de pé. Eu ganho um assento e assisto ao desfile ao lado da atriz, que retira a mão de minhas costas delicadamente, roçando de leve as pontas das unhas na minha camiseta.
A grife Graça Ottoni trouxe à passarela um outono-inverno confortável que também ousou ser sexy, com apliques e estampas florais, blusas e vestidos finos com mangas em crochê, xales multicoloridos e calças leves. Não que eu entenda porra alguma sobre isso mas qualquer jornalista na minha posição tem que aceitar quando é escalado para cobrir O Evento de Moda do Rio de Janeiro, o Fashion Rio / Fashion Business. Unindo sob a estrutura do Museu de Arte Moderna, o MAM, moda e negócios, o evento pretende reerguer a indústria têxtil carioca, que hoje amarga um último lugar no ranking do mercado, atrás de São Paulo e Minas Gerais. Este é o Fashion Rio 2003. E um jornalista na minha posição, seria o quê? Alguém cujo quark universal e intergaláctico obedece ao quark de um chefe que, não satisfeito em me mandar cobrir desfiles de moda, também me enviará à Sapucaí em março pra cobrir desfiles de escolas de samba. Porque ele pode.
Eu não tenho uma partícula sequer em mim que jamais tenha remotamente se interessado por moda. Tenho 1,60 de altura e briguei com meu peso por muitos anos, meu cabelo é longo e ondulado e eu amarro a cara na defensiva quando vejo uma câmera. Pra completar, meu chefe não conseguiu (SIC) um substituto pra mim no meu trampo diário, que corresponde a atualizar um site sobre toda a programação cultural do Rio de Janeiro (da última vez que checaram era uma cidade enorme e bastante movimentada), desde o HTML das páginas e as fotos até lidar com os leitores, correr atrás de promoções para os leitores, lidar com os leitores e escrever as matérias e tijolinhos com as referências sobre o que acontece na cidade. Sem substituto pra isso, eu tenho que passar o dia e parte da noite assistindo a desfiles de moda e ainda dar conta de todo o resto. Eu acredito que, neste momento, minha sanidade mental está a 15% e o corpo... cansado. Cansado demais.
Desde a abertura do evento na segunda-feira, 3, durmo as duas, três da madrugada e chego aqui às 13h pra começar nova maratona. Subo e desço correndo uma rampa que leva de uma das salas onde acontecem os desfiles à sala de imprensa, porque é preciso dar as notas imediatamente assim que os desfiles terminam. Não posso passar o texto lá de cima por celular a um outro membro da equipe porque não existe um outro membro da equipe exceto meu fotógrafo, Celso, um coroa gente boa que corre pra cima e pra baixo comigo também. Me ajudou pacas no primeiro dia em que cheguei aqui e tava afônica por causa de umas festas do fim de semana. Ele se aproximava com o ouvido pra entender as instruções que eu tentava sussurrar antes de cada desfile ou quando avistava alguma personalidade - nossa querida atriz do primeiro parágrafo era uma delas - sentada na primeira fila.
Hoje, quarta-feira, minha voz já está de volta mas ainda vacilante. E eu tusso no ar-condicionado assassino da sala de imprensa, usando um casaquinho patético de velho sobre roupa toda preta e um tênis laranja. O bom desse lugar é que tudo é válido. As pessoas vêm com um puta vestidão ou um belo jeans e lá embaixo tascam uma sandália Havaiana da série mais tosca, mais rasteira. Uma calça velha cortada e uma camiseta preta e um tênis conga verde. Um tomara-que-caia transparente e sandálias de salto fino também aparecem. Resumindo: se você estiver mulambento, bem-vindo. Se você estiver alinhadíssimo, bem-vindo. Mas que seja tudo muito natural. Acho que essa foi a primeira lição de moda que eu aprendi na minha vida. Vou tentar não esquecer.
O desfile acaba e a atriz se vira pra perguntar onde vai sair a matéria e se a foto entra. Eu respondo e mando outra pergunta, lembrando que o chefe queria:
- Como você vai de amores? (Como eu pude?)
- Não tenho ninguém em vista. Mas eu quero ser vista.
Entendida a mensagem, desci para contar aos leitores sobre o filme em que ela interpretará Madalena ("Vai ter Jesus, Judas... é de uma diretora estreante").
Noutra apresentação, da marca Permanente-Andrea Saletto, o ex-Farofa Carioca e atual hype da cidade Seu Jorge encarnou uma mistura de puxador de samba e MC, fazendo ao vivo a trilha sonora do desfile, ao lado do DJ Negralha. Seu Jorge é sucesso com os shows da mega banda (16 integrantes, entre eles Moreno Veloso, a atriz Thalma de Freitas e Amarante, do Los Hermanos) Orchestra Imperial, que lota o Ballroom tocando bolero, cha-cha-cha e sambas clássicos para a juventude tostada de praia, que bate palma e pede bis. Cercado pelos fotógrafos no fim do desfile, garantiu que a Orchestra vai dar mais caldo que as apresentações ao vivo: "A Orchestra vai gravar", declarou, "estamos decidindo repertório". E sumiu na direção dos camarins, deixando pra trás o burburinho por conta da ausência de seu tradicional black power, agora tosado, e a opção pelo kilt com estampa da coleção Permente e sandálias. As jornalistas adoraram. "Tão másculo".
Por volta das 19h eu consegui agarrar alguns sanduichinhos que moravam no balcão do buffet na sala de imprensa. Os agrados vêm em bandejas, na forma de sorvetinhos de frutas ou doces finos. É preciso adoçar essa turma. O caderno Ela, do Globo, é um dos maiores incentivadores do Fashion Rio e fala muitíssimo bem do evento, assim como Joyce Pascovitch e Erika Palomino. Mas sempre há aqueles que vêm determinados a falar mal de tudo, antes mesmo de conferir as coleções.
- O Fashion Rio não existe. Porque não existe moda no Rio.
Por mais desligada que eu seja do assunto, já ouvi isso milhares de vezes. Desta vez, estou ouvindo de J.L., uma das estilistas que trabalham para a Cavendish (que não está no Fashion Rio), num pub irlandês. Eu e ela freqüentamos religiosamente esse bar e eu nunca me lembro de que ela trabalha com moda porque é um dos últimos assuntos que qualquer pessoa tenta puxar comigo. Dessa vez, eu tomei a iniciativa e agora ouvia sua opinião dramática sobre o evento.
- Em São Paulo sim! Aqui, não tem criação. Não adianta fazer um evento de moda numa cidade que não cria moda.
Com tal fracasso vaticinado antes mesmo de eu apresentar minha credencial pela primeira vez ao segurança na entrada da sala de imprensa, eu esperava o pior.
Meu fotógrafo chegou e a gente tem que tentar invadir um camarim antes do primeiro desfile porque o chefe quer mais bastidores.
Continua...
A grife Graça Ottoni trouxe à passarela um outono-inverno confortável que também ousou ser sexy, com apliques e estampas florais, blusas e vestidos finos com mangas em crochê, xales multicoloridos e calças leves. Não que eu entenda porra alguma sobre isso mas qualquer jornalista na minha posição tem que aceitar quando é escalado para cobrir O Evento de Moda do Rio de Janeiro, o Fashion Rio / Fashion Business. Unindo sob a estrutura do Museu de Arte Moderna, o MAM, moda e negócios, o evento pretende reerguer a indústria têxtil carioca, que hoje amarga um último lugar no ranking do mercado, atrás de São Paulo e Minas Gerais. Este é o Fashion Rio 2003. E um jornalista na minha posição, seria o quê? Alguém cujo quark universal e intergaláctico obedece ao quark de um chefe que, não satisfeito em me mandar cobrir desfiles de moda, também me enviará à Sapucaí em março pra cobrir desfiles de escolas de samba. Porque ele pode.
Eu não tenho uma partícula sequer em mim que jamais tenha remotamente se interessado por moda. Tenho 1,60 de altura e briguei com meu peso por muitos anos, meu cabelo é longo e ondulado e eu amarro a cara na defensiva quando vejo uma câmera. Pra completar, meu chefe não conseguiu (SIC) um substituto pra mim no meu trampo diário, que corresponde a atualizar um site sobre toda a programação cultural do Rio de Janeiro (da última vez que checaram era uma cidade enorme e bastante movimentada), desde o HTML das páginas e as fotos até lidar com os leitores, correr atrás de promoções para os leitores, lidar com os leitores e escrever as matérias e tijolinhos com as referências sobre o que acontece na cidade. Sem substituto pra isso, eu tenho que passar o dia e parte da noite assistindo a desfiles de moda e ainda dar conta de todo o resto. Eu acredito que, neste momento, minha sanidade mental está a 15% e o corpo... cansado. Cansado demais.
Desde a abertura do evento na segunda-feira, 3, durmo as duas, três da madrugada e chego aqui às 13h pra começar nova maratona. Subo e desço correndo uma rampa que leva de uma das salas onde acontecem os desfiles à sala de imprensa, porque é preciso dar as notas imediatamente assim que os desfiles terminam. Não posso passar o texto lá de cima por celular a um outro membro da equipe porque não existe um outro membro da equipe exceto meu fotógrafo, Celso, um coroa gente boa que corre pra cima e pra baixo comigo também. Me ajudou pacas no primeiro dia em que cheguei aqui e tava afônica por causa de umas festas do fim de semana. Ele se aproximava com o ouvido pra entender as instruções que eu tentava sussurrar antes de cada desfile ou quando avistava alguma personalidade - nossa querida atriz do primeiro parágrafo era uma delas - sentada na primeira fila.
Hoje, quarta-feira, minha voz já está de volta mas ainda vacilante. E eu tusso no ar-condicionado assassino da sala de imprensa, usando um casaquinho patético de velho sobre roupa toda preta e um tênis laranja. O bom desse lugar é que tudo é válido. As pessoas vêm com um puta vestidão ou um belo jeans e lá embaixo tascam uma sandália Havaiana da série mais tosca, mais rasteira. Uma calça velha cortada e uma camiseta preta e um tênis conga verde. Um tomara-que-caia transparente e sandálias de salto fino também aparecem. Resumindo: se você estiver mulambento, bem-vindo. Se você estiver alinhadíssimo, bem-vindo. Mas que seja tudo muito natural. Acho que essa foi a primeira lição de moda que eu aprendi na minha vida. Vou tentar não esquecer.
O desfile acaba e a atriz se vira pra perguntar onde vai sair a matéria e se a foto entra. Eu respondo e mando outra pergunta, lembrando que o chefe queria:
- Como você vai de amores? (Como eu pude?)
- Não tenho ninguém em vista. Mas eu quero ser vista.
Entendida a mensagem, desci para contar aos leitores sobre o filme em que ela interpretará Madalena ("Vai ter Jesus, Judas... é de uma diretora estreante").
Noutra apresentação, da marca Permanente-Andrea Saletto, o ex-Farofa Carioca e atual hype da cidade Seu Jorge encarnou uma mistura de puxador de samba e MC, fazendo ao vivo a trilha sonora do desfile, ao lado do DJ Negralha. Seu Jorge é sucesso com os shows da mega banda (16 integrantes, entre eles Moreno Veloso, a atriz Thalma de Freitas e Amarante, do Los Hermanos) Orchestra Imperial, que lota o Ballroom tocando bolero, cha-cha-cha e sambas clássicos para a juventude tostada de praia, que bate palma e pede bis. Cercado pelos fotógrafos no fim do desfile, garantiu que a Orchestra vai dar mais caldo que as apresentações ao vivo: "A Orchestra vai gravar", declarou, "estamos decidindo repertório". E sumiu na direção dos camarins, deixando pra trás o burburinho por conta da ausência de seu tradicional black power, agora tosado, e a opção pelo kilt com estampa da coleção Permente e sandálias. As jornalistas adoraram. "Tão másculo".
Por volta das 19h eu consegui agarrar alguns sanduichinhos que moravam no balcão do buffet na sala de imprensa. Os agrados vêm em bandejas, na forma de sorvetinhos de frutas ou doces finos. É preciso adoçar essa turma. O caderno Ela, do Globo, é um dos maiores incentivadores do Fashion Rio e fala muitíssimo bem do evento, assim como Joyce Pascovitch e Erika Palomino. Mas sempre há aqueles que vêm determinados a falar mal de tudo, antes mesmo de conferir as coleções.
- O Fashion Rio não existe. Porque não existe moda no Rio.
Por mais desligada que eu seja do assunto, já ouvi isso milhares de vezes. Desta vez, estou ouvindo de J.L., uma das estilistas que trabalham para a Cavendish (que não está no Fashion Rio), num pub irlandês. Eu e ela freqüentamos religiosamente esse bar e eu nunca me lembro de que ela trabalha com moda porque é um dos últimos assuntos que qualquer pessoa tenta puxar comigo. Dessa vez, eu tomei a iniciativa e agora ouvia sua opinião dramática sobre o evento.
- Em São Paulo sim! Aqui, não tem criação. Não adianta fazer um evento de moda numa cidade que não cria moda.
Com tal fracasso vaticinado antes mesmo de eu apresentar minha credencial pela primeira vez ao segurança na entrada da sala de imprensa, eu esperava o pior.
Meu fotógrafo chegou e a gente tem que tentar invadir um camarim antes do primeiro desfile porque o chefe quer mais bastidores.
Continua...