no.com.br, 01 de Março de 2002
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Depois do arco-íris
”Nesse negócio, vale qualquer coisa. Desde que você consiga dormir à noite”. - Dick Clark, apresentador de programa de música e variedades nos Estados Unidos, em entrevista a Ben Fong-Torres, em 1973.
As coisas que nos tiram o sono são coisas que não valem a pena, por mais grana que tragam, por mais reconhecimento que tragam.” - Marcelo Camelo
Certamente, você já ouviu uma música do carioca Marcelo Camelo. Deve ser possível contar nos dedos das mãos quem mora no Brasil e não ouviu “Anna Júlia” ao menos uma vez, desde 1999, ano em que Los Hermanos gravaram a faixa.
Quando conversamos pela primeira vez, em 98, num boteco da Praia de Botafogo, a banda de Marcelo contava então menos de uma dezena de apresentações, todas em pequenos bares como o Empório, em Ipanema, e o Bukowski, em Botafogo, mas já havia arrebanhado um público fiel que sabia de cor suas letras. Agora, depois do verão de “Anna Júlia”, das regravações do sucesso assinadas por Frank Aguiar e Jim Capaldi (com participação especial do ex-Beatle George Harrison) e de ganhar – acanhado – o prêmio da MTV para o qual Chico Buarque também havia sido indicado, a única mudança evidente em Marcelo parece ser a enorme barba que tenta somar mais idade a 24 anos completados este mês. “Todo mundo pergunta esse lance das barbas e eles sempre fazem palhaçada pra responder. Mas é que eles gostam de conquistar ‘sendo feios’, essas coisas...”, explica Marcus Sketch, amigo próximo dos Hermanos que, assim como Alex Werner, cuida do website oficial da banda.
Mas o visual “Talibã” não é a única mudança na banda. Tudo começou com uma alteração em seu som, que abandonou o hardcore para fazer harmonias mais complexas e andamentos mais lentos, que as privilegiam. Depois, a banda trocou de empresário (“Agora estamos com um empresário “menor”) no final do ano passado. Seu status na gravadora Abril Music também sofreu alterações. A mesma coisa aconteceu com seu lugar nas paradas das rádios e da MTV.
A gravadora não acreditou em “Bloco do Eu Sozinho”, sucessor do álbum que estourou com “Anna Júlia”, em 1999, ainda que “Bloco” tenha recebido críticas entusiasmadas em todo o país. A Abril exigiu que a banda refizesse o trabalho, do repertório à produção, pedindo inclusive a substituição do produtor Chico Neves por Marcelo Sussekind (O tecladista Bruno escreve sobre a troca de produtores no site da banda, em “biografia 2001”). A banda não cedeu e entregou o trabalho para a distribuição mantendo suas características essenciais intocadas pela remixagem de Sussekind. A Abril, em troca, ofereceu divulgação fraca, o que resultou em poucos shows pelo país.
O vocalista, guitarrista e principal letrista da banda chega descalço, de bermudão largo e camiseta listrada, à portaria do prédio onde mora no Humaitá, Zonal Sul do Rio de Janeiro.
- Não repara na bagunça. Homem morando sozinho... sabe como é...
Marcelo se mudou há menos de 15 dias para o apartamento. Na sala, pilhas de CDs enfileiradas tomam uma das paredes; no único armário à vista, parte de sua coleção de vinis: Raridades nacionais, onde a banda garimpa covers como “A Palo Seco”, de Belchior, tocada no programa Luau MTV, em Fevereiro. Além do armário, os únicos móveis são uma mesinha de centro e um sofá. A caixa-coletânea de Chico Buarque, um de seus compositores preferidos, ao lado de Noel Rosa, faz parte do cenário.
Entrego a ele o CDR de uma banda independente carioca. Como bom ex-estudante de jornalismo (PUC-RJ), ele me faz perguntas:
- Quanto é que custa pra fazer um CDR, por unidade?
É seu jeito de começar a conversa, falando dos tempos em que fazia o fanzine “Doostraw” com o amigo e produtor Alex Werner, e distribuía fitas-demo dos Hermanos entre outros fanzineiros para conquistar público entre os freqüentadores de casas como o Garage, abafado, com palco pequeno e difícil acesso no Rio. A cena de rock alternativa de onde Los Hermanos emergiram em 1999 ganhou uma tendência de se dirigir – ou pelo menos tentar – cada vez mais ao mainstream. Na época da entrevista no boteco em Botafogo, os Hermanos trabalhavam, então, com estrutura de banda independente mas responsabilidade de banda grande. “Quem gosta mesmo de música quer viver de música,” contou. “Acredito que, se existisse mercado alternativo no Brasil como eu acho que existe nos EUA, com bandas que conseguem sobreviver num esquema independente tocando em tudo que é lugar, fazendo mini-turnês, e o cara até ganha dinheiro com isso... se existisse um esquema assim eu estaria mais que satisfeito.”
Depois de quase quatro anos, um mega-hit e de algum conhecimento adquirido sobre o mainstream de que tanto se falava com alguma ingenuidade, o que a banda busca agora é justamente um “esquema” semelhante, que permita sobreviver no mercado entre a simplicidade da estrutura independente e as obrigações com a gravadora.
- Quando a banda fala é que mais se fode. Quando jornalista fala pela banda, sempre sai um pouco melhor.
É, mas ninguém melhor do que você para falar sobre o pote de ouro depois do arco-íris que parece ser a fantasia de todo artista não-contratado no Brasil.
Marcelo Camelo: É isso... Agora acanhei. – Hesita, mas logo esquece do gravador.
Você vê algo errado na postura das gravadoras hoje em dia?
MC: É uma lista sem fim, mas se resume à falta de respeito pelo artista. Ponto. Isso tem muitas causas, causas muito grandes, muito maiores que a própria gravadora. Isso passa pelas rádios, passa pela televisão, passa pela maneira como as pessoas do mercado vêem o músico, como o próprio mercado fonográfico virou um negócio que tem muito a ver com dinheiro e pouco a ver com arte.
Como funciona isso hoje?
MC: As gravadoras entraram num círculo vicioso de procurar sempre a próxima sensação, a próxima moda, a próxima coisa que vai estourar e vai vender e acabar três meses depois. Parece um cachorro tentando morder o próprio rabo. Elas não formam mais um cast firme, não conseguem ter um artista como Legião Urbana, que não precisa de um centavo do dinheiro pro marketing, não precisa dar um centavo pra Legião Urbana hoje em dia e continua vendendo disco. E que vai vender disco durante muito tempo. Eu fico pensando... será que todas essas bandas do anos 80 que fizeram carreira no Brasil tiveram no primeiro single um megahit? Será que nenhuma bateu na trave? Sei lá, Plebe Rude, Capital? Será que o primeiro single de todas elas foi um grande sucesso? Hoje em dia não se permite mais bater um primeiro single na trave. Não deu certo, já era. No nosso caso, a gente vendeu mais de 300 mil discos do primeiro disco, é um número razoável pra uma banda de rock. Fizemos um segundo disco considerado um dos melhores discos do ano pelo Globo, JB, O Dia, jornal da Bahia, Brasília. E a gente não teve um segundo single. Só o primeiro: Só tocou “Todo Carnaval”. Porque “Sentimental”, a gente fez um clipe, orçamento baixíssimo, e não toca na rádio.
Se a gravadora não ajuda, é ela a culpada por as músicas novas não serem tocadas pelas rádios?
MC: É, precisa de investimento, a gravadora resolver fazer promoção, sim.
Não sai mais caro investir numa banda nova que vai durar pouco do que privilegiar os artistas de seu cast?
MC: Se você realmente consegue encontrar um Frank Aguiar a cada três meses, você faz uma gravadora de sucesso. ...Frank Aguiar, o Harmonia do Samba, todo mundo que vende muito disco em pouco tempo. Mas não seria mais prudente pra uma gravadora que pensa na sua existência a longo prazo, pegar artistas sólidos, artistas que pensem em uma carreira? Talvez, se o presidente de uma gravadora fizer isso hoje, ele perde o cargo. Entendeu? Gravadora não está preocupada com investimento a longo prazo. Cadê o Maurício Manieri? Ele é da Abril. Eu nãos ei onde está o cara. Ele vendeu à beça, cadê o trabalho de continuidade? Não consigo entender porque não valeria a pena investir em carreira. Tudo é muito descartável. A gravadora desacredita completamente sempre se a banda não tem um megahit a cada seis meses. É difícil. A galera de bandas independentes, elas têm que ter muito cuidado com esse sonho de assinar com uma gravadora grande. Quando você entra pra uma gravadora, começa a envolver o interesse de um monte de gente, você começa a sentir muita pressão, é um lugar um pouco diferente. Se você tá disposto a pagar as conseqüências de não ceder... mais que uma disposição de não querer mudar diante das pressão, é uma questão pessoal de não conseguir. Pô, num consigo aceitar que o cara fale pra mim que eu tenho botar no repertório do disco uma música que ele acha mais comercial e ceder a isso... não consigo! Nem que eu quisesse. É uma parada que ia tirar meu sono. E as coisas que nos tiram o sono são coisas que não valem a pena, por mais grana que te tragam, por mais reconhecimento. Ninguém vai responder por você uma pergunta sobre o seu disco. Então que o seu disco só tenha as coisas das quais você se orgulhe.
Houve um hiato de shows entre outubro e agora, fevereiro de 2002...
MC: O negócio do nosso hiato de shows, quando a música não toca na rádio, é difícil conseguir show. Esse é o problema de você ter uma banda com uma estrutura grande e que não tem o apoio da gravadora e que não toca na rádio. Você não tem mobilidade. O grande lance do underground é você ter o seus equipamentos, carregar tudo no seu carro e a sua estrutura se bastar, não precisar gastar dinheiro pra que a banda entre no palco. Você faz show num quiosque se você puder, entendeu? A gente não pode mais fazer isso porque, só no palco, são quatro músicos contratados, então já existe um custo inicial pra que a banda toque. Então tem que ter uma infra-estrutura mínima, um dinheiro mínimo pra tocar. E se a música não tá tocando no radio...
Eles não quiseram ajudar o disco nas rádios? Hoje em dia rádio não toca nada se não rolar um...
MC: Eles não gostaram do disco, eles queriam que a gente refizesse o disco com outro repertório, com outro produtor. Isso não era uma opção pra gente. Disco não é uma coisa que você faz de uma hora pra outra. É um repertório de músicas que você compôs e falam de situações que você passou e que você divide o arranjo com seus amigos, que você passou um tempo fazendo e tal. Muita gente tomou nossa atitude em relação ao “Bloco” como corajosa, mas não acho que seja coragem. Acho que é só uma falta de opção. Da maneira que foi colocado pra gente, ou a gente lançava o disco do jeito que o disco era, do jeito que a gente queria, ou a gente largava a banda e voltava pra faculdade. Não era uma opção refazer o disco com outro produtor depois de ter passado seis meses bolando o disco, de ter feito arranjos com tanto carinho, e o disco na verdade é um registro de momentos. Você não vai recuperar os momentos. Ia ter que gravar outro disco. E a gente não ia fazer outro naquele momento. A gravadora só é um dos alicerces responsáveis por manter isso. A banda tem que ser muito mais forte que o mercado, que a gravadora, do que rádio... pra isso, tem que ser perseverante, gostar do que faz... ser inteligente pra buscar alternativas pra isso, pra tocar.
Então, como fica a situação da banda?
MC: A gente precisa achar um meio termo, pra bancar nossa estrutura mais ou menos sem precisar de um apoio total da gravadora, porque a gravadora vai apoiar quando ela sentir que o disco tá pro lado dela, quando ela sentir que o disco é fácil, que ela não vai precisar se empenhar muito. Durante muito tempo a gente teve muita raiva da Abril, uma coisa meio adolescente, de quem tá entrando no mercado, e a nossa visão hoje em dia é um pouco mais serena em relação a isso. A gente viu que a Abril é parte de uma coisa maior. Quem manda é a grana mesmo, sabe? Quem vai dar mais grana é quem vai estar por cima da carne seca. Só que quem vai dar mais grana hoje pode ser quem não vai dar grana amanhã. Eu só acho muito burra mesmo essa falta de preocupação com o futuro. Uma gravadora que trabalha procurando artistas que vão estourar a cada três quatro meses, passar um ano sem encontrar um artistas desses, se houver no mercado um lapso de artistas de vendam um milhão de cópias, a gravadora acaba, né? “Cadê Teu Suin” (faixa de “Bloco do Eu Sozinho”) fala muito sobre isso. (...) Esse negócio de música de trabalho, que é uma das coisas mais cruéis que se pode fazer com um artista que é pegar o disco dele e resumir o disco a uma coisa só. De tomar o todo pela parte. Mas isso é só o mercado.
Segunda opinião: A crise é o decreto de que algo não vai bem com o mercado como o conhecemos, é a falência de um formato de gerir as coisas. No momento, parece estar se delineando um meio termo, como Marcelo Camelo procura, para acomodar os artistas. Com a palavra, a baixista e vocalista Simone do Valle, do Autoramas:
- Antes da nossa geração, banda que prometia e não estourava no segundo disco acabava, brigava, era chutado da gravadora. Hoje a gente vê Bidê ou Balde, Penélope, Autoramas. Los Hermanos, Matanza, Video Hits... formar um bonde intermediário, sem sentido pejorativo, porque custa muito sobreviver nesse mercado das múmias. Era pra ter mais banda nessa jogada, era pro underground inteiro estar nessa, forçando a barra, metendo o pé na porta. Afinal, a gente veio daonde? Cogumelo Plutão, Surto, Tihuana, Superfly... essas não vieram do mesmo lugar que a gente. Ter ou não ter um hit na rádio não impede ninguém de nada. O público existe, e está aí. As casas de shows existem. É só ter vontade de trabalhar duro porque jabá nenhum desse mundo garante nada pra banda merda. O Surto que o diga. Cadê o Surto? Mas eu sei aonde estão os Hermanos, aonde a gente está, aonde está o Penelópe... ahá!
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