1. Jornalismo Literário
Em fevereiro de 1972, a revista New York publicou um artigo intitulado “O Nascimento do New Journalism – Reportagem de Testemunha Ocular por Tom Wolfe”, no qual o jornalista e escritor norte-americano declarava, em 13 páginas maciças de texto e fotos, a morte do romance. Seu argumento era a chegada da nova safra de livros de não-ficção, que passavam a tomar emprestado ferramentas da narrativa literária para elaborar um estilo de reportagem inteiramente novo. O gênero que seria primeiro cunhado por Wolfe como New Journalism (Novo Jornalismo), passando a chamar-se, nos Estados Unidos, Jornalismo Literário, começara a firmar-se entre as décadas de 30 e 60. A tradição que ajudou a formá-lo, no entanto, data de muito antes: há registros de que em 1700, os escritos do norte-americano Daniel Defoe carregassem características do estilo. Uma tradição que pode ser observada também em Mark Twain, Stephen Crane, John dos Passos, Ernest Hemingway, George Orwell e Mary McCarthy.
Os primeiros experimentos literários de Wolfe em não-ficção foram escritos para a New York e para o jornal Herald Tribune, onde passou a trabalhar como repórter em 1962, e transformados, em 1965, no best-seller “The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby”, sobre as mudanças de comportamento na cultura americana que observara na primeira metade da década de 60.
Antes de Wolfe, na década de 30 ainda, o jornalista Joseph Mitchell já começara a dar pistas do trabalho que apresentaria anos mais tarde na revista The New Yorker e que já podia ser classificado como Jornalismo Literário.
When writers, readers, English teachers, librarians, bookstore people, editors, and reviewers discuss extended digressive narrative nonfiction these days, they're fairly likely to call it literary journalism. The previous term in circulation was Tom Wolfe's contentious "New Journalism." Coined in the rebellious mid-sixties, it was often uttered with a quizzical tone and has fallen out of use because the genre wasn't really alternative to some old journalism, and wasn't really new.
Literary journalism is a duller term. Its virtue may be its innocuousness. As a practitioner, I find the "literary" part self-congratulating and the "journalism" part masking the form's inventiveness. But "literary journalism" is roughly accurate. The paired words cancel each other's vices and describe the sort of nonfiction in which arts of style and narrative construction long associated with fiction help pierce to the quick of what's happening - the essence of journalism.
1.1. Características do texto de Jornalismo Literário
O Jornalismo Literário pode ser trabalhado sob diferentes perspectivas, com características em comum: uma das mais marcantes é que o autor faz parte da história ativamente, como observador participante. Outra marca importante é o uso de representações simbólicas e de estruturas complexas de texto. O que denominam “voz do autor” tem papel crucial, ao lado de outros procedimentos recorrentes.
O objetivo da construção típica do texto de Jornalismo Literário é fazer com que o estilo e a narrativa, associadas a elementos de ficção, sirvam para atingir a essência do jornalismo propriamente dito, e responder da melhor maneira à sua questão fundamental: o que está acontecendo?
No artigo de abertura escrito por Mark Kramer para “Literary Journalism – A New Collection Of The Best American Non-Fiction”, co-editado por Kramer e Norman Sims, são listadas oito regras para jornalismo literário, com o senso de humor que é também uma das possibilidades marcantes do estilo, sob o título “Breakable Rules For Literary Journalists” (algo como “Regras Nada Rígidas Para Jornalistas Literários”).
I - Imergir-se no universo do assunto da reportagem.
Jornalistas Literários acompanham durante bastante tempo suas fontes; podem passar de meses a anos envolvidos na rotina das pessoas relacionadas ao seu assunto escolhido e, enquanto cumprem esta etapa do seu trabalho, devem estar sempre atentos a quaisquer alterações nesta rotina e personagens observadas, imaginando constantemente como deverá retratá-los. A imersão é necessária para garantir a compreensão do tema de maneira que mostre níveis diferentes das pessoas em suas rotinas - nuanças como fragilidade, maldade, gentileza, vaidade, generosidade, egoísmo, humildade - de acordo com a realidade, sem explicações burocráticas ou oficiais, do tipo “preto no branco”, para as situações e personalidades apresentadas mas usando decepções, hipocrisias, situações engraçadas para ajudar na compreensão do fato, da experiência pelo leitor.
É preciso tempo para atingir este nível com o tema e as fontes observados, para chegar ao ponto em que as verdades aparecem. Este tempo é dividido entre um estudo prévio sobre o tema, realizado através de livros, revistas, jornais, etc.; “trabalho de campo” propriamente dito: acompanhamento tomando notas sobre o ambiente, frases ouvidas entre as fontes que possam oferecer esclarecimento sobre o tema e mostrar a personalidade das pessoas envolvidas; tempo para repensar todas as primeiras impressões e entender o que está se passando enquanto faz a observação.
II – Relação do jornalista literário com a fonte-assunto e com o leitor
Os primeiros parágrafos podem determinar se o leitor deve ou não confiar nos relatos da experiência do jornalista literário: este deve dar demonstrações de franqueza, escrevendo sem rodeios e apresentando, de forma implícita, a maneira como vai abordar seu tema.
“Em qualquer tipo de jornalismo, você tem que construir um laço de confiança, tem que deixar as pessoas se sentirem à vontade quando você tá em volta e esquecer de você como repórter e aí falar as coisas”, explica Joe Nocera. Nocera é autor de “The Ga-Ga Years”, em 1998, não só uma história sobre o mercado de ações mas sobre como circula o dinheiro hoje.
Cabe ao leitor julgar se o autor cumpre o que “promete” nos primeiros parágrafos, o que leva a duas questão de natureza ética:
a) Relação do autor com o leitor: Uma prática muito utilizada em textos de New Journalism e Jornalismo Literário é a inserção de personagens e diálogos criados pelo jornalista. Ainda que isso seja considerado antiético, a intenção não é o dolo: trata-se de um expediente para reavivar, tornar mais claro um evento, um fato testemunhado e/ou vivido pelo autor, que tenha relação crucial com a história que conta. Mark Kramer não condena a prática e cita um dos pioneiros do gênero, Joseph Mitchell, como jornalista que se utilizou dela para tornar mais vivo algum evento em seus livros. Mais grave do que “realçar” fatos através dessa prática pode ser a utilização de detalhes inconsistentes, o que ameaça a descrição de uma cena e dá sinais de que as teorias sobre o evento precisam de mais investigação, se não explicam o que aconteceu.
b) Relação do autor com sua fonte-assunto: o jornalismo literário exige uma aproximação intensa do autor com suas fontes (chamadas aqui “fonte-assunto” por constituírem, mais que uma fonte para depoimentos sobre o tema investigado, o assunto da matéria) para que escreva com autenticidade sobre a “Felt Life” a que Henry James referia-se, ou a vida não-idealizada. São muitas as dificuldades que podem ser encontradas no caminho dessa autenticidade: a fonte e/ou assunto investigado têm de consentir em ter por perto por um longo período a presença do autor em suas vidas; esta presença vira uma companhia e é comum que se torne uma relação de amizade, que é mútua. Se amigos, família, maridos, esposas costumam obter verdades que Kramer denomina “socialmente estratégicas” sobre a fonte-assunto, o trabalho do jornalista literário é chegar à verdade que está além desses fatos socialmente estratégicos, ou seja, que são apenas convenientes e aceitáveis entre os que cercam sua fonte-assunto. O autor, sem má fé, deve tentar atingir o acesso irrestrito a um nível da fonte-assunto que geralmente esta oblitera do conhecimento de suas relações – as intenções do autor devem ser sempre expostas à fonte-assunto com a maior clareza e veracidade, sem falsidade alguma.
Mark Kramer relata sua própria experiência em aproximar-se da fonte-assunto para tornar mais claro o procedimento: “Minha norma é mostrar (previamente) artigos antigos, tornar claro o nível de exposição pública envolvido, estipular que a fonte-assunto não poderá editar meus manuscritos ou checar citações.” E lembra: “Qualquer gênero, seja ele jornalismo diário ou literário, poesia ou ficção, depende em última instância da integridade do autor”.
III – Jornalistas literários escrevem quase sempre sobre eventos rotineiros
A necessidade de obter acesso total e conveniente para sua investigação obriga o jornalista literário a escolher assuntos rotineiros e lugares que podem ser freqüentados, o que não significa assuntos e lugares que despertem pouco interesse. Rotina não é, necessariamente, algo desinteressante. Uma vida comum, investigada a fundo e contada sob uma perspectiva interessante torna-se interessante.
O objetivo do autor em tornar-se presente na rotina de suas principais fonte não deve ser o de se socializar ou tornar-se um insider mas aprender como pensa o insider, em que pensa, suas vivências e perspectivas e o que é rotina para ele. O insider que ler um trabalho jornalístico sobre seu meio deve achá-lo relevante e preciso, mas não da perspectiva de um insider.
Há casos em que a rotina de terceiros não precisa ser observada para que a história seja relatada sob a perspectiva de um jornalista literário: Francis Steegmuller, por exemplo, publicou em 1986 na revista New Yorker “The Incident At Naples”, em que relata na primeira pessoa a própria experiência de ter sido roubado e ferido durante uma viagem, evento inicialmente rotineiro que se torna situação-limite. “Talvez seja para atingir esses limites que os escritores lançam-se em viagens (...) e vivem para contar”, comenta Kramer. Participar: “Não viajo para me divertir, só, é mais para ver coisas que me interessam e apresentar meu testemunho delas”, escreveu Ted Conover (autor de “Rolling Nowhere”, 1984, sobre seu convívio seguindo, durante um ano, grupos de pessoas que viviam nas ruas). Participar também é um jeito de encontrar a narrativa, a voz íntima no texto, de ficar próximo do leitor e do assunto ao mesmo tempo: ou seja, o autor é insider e ao mesmo tempo está perto do leitor; e este sabe tudo o que o autor passou pra chegar até ali. Se o autor conta a sua trajetória junto da matéria, familiariza o leitor com a verdade sobre a sua matéria, ainda que o conteúdo apresente detalhes que não apareceriam normalmente em uma matéria de jornal comum sobre o assunto. Esses detalhes, pequenas digressões, servem para transportar o leitor para um ponto onde a lógica, sozinha, não leva.
IV - A voz própria do jornalista literário:
A chamada voz própria do jornalista literário é a linguagem adotada por ele para abordar seu assunto na matéria/livro. Ela deve ser informal, franca, irônica, humana. A impessoalidade que qualifica o escritor acadêmico, que apresenta seu material de pesquisa sem estabelecer uma relação com o leitor; ou a objetividade, a exposição não opinativa de fatos do jornalista ortodoxo são características opostas ao jornalismo literário. O narrador neste estilo tem personalidade: joga com ironia, dúvidas, e até humor auto-depreciativo. Enquanto o repórter comum aprende a guardar para si sua opinião sobre o que relata , assim como suas reações diante dos fatos, Mark Kramer explica que a voz íntima a que se refere é a voz da pessoa nua. Sem o abrigo burocrático do jornalismo convencional, surge a voz de alguém que passou por uma experiência e relata cada viez da mesma, desde os momentos do trabalho em que houve dúvidas, medo, engano, tristeza, excitação, fúria, mau humor, até a reflexão. Essa voz é a força do jornalismo literário. Kramer costuma sugerir aos seus alunos da Universidade de Boston um exercício para que encontrem sua voz íntima: escrever como se estivessem contando uma história para amigos próximos cujo senso de humor e inteligência respeitam. O que pode surgir é uma voz bem-humorada, consciente, não-autoritária. Lê-la é quase sempre uma experiência envolvente.
A escrita acadêmica e noticiosa, impessoal e objetiva, visa a mostrar ao leitor os fatos. Suas restrições quanto à opinião do autor acabam por esconder grandes fatias da realidade do fato. A linguagem formal protege tabus, aparências e “verdades oficiais”. A voz própria seria uma maneira de derrubar essa proteção. Para Kramer, a voz íntima mostra as pessoas e as instituições como elas são.
Quanto à ironia, ela serve para mostrar um outro lado da ação diferente daquele considerado ou experimentado pelos agentes. Não precisa surgir do sarcasmo ou de comentários maldosos.
V – Estilo: claro e econômico
Se a linguagem da voz íntima é informal e irônica, seu estilo deve ser elegante e o mais simples possível, sem rebuscamentos. Limpa, lúcida, pessoal, essa linguagem aproxima o leitor da experiência relatada. Evocativa, bem humorada, dando preferência a verbos de ação e não aos mais abstratos, adjetivos, deve levar o leitor não apenas a imaginar um fato mas “senti-lo”; sentimentos também levam o leitor onde a lógica não pode levar. Por isso é tão importante que o jornalista literário relate o que sentiu e pensou em momentos cruciais de sua observação do assunto.
VI –Digressão
Falar diretamente ao leitor é uma característica dos melhores autores deste gênero; desta forma, o autor torna-se um anfitrião do leitor na experiência que relata e para a qual o atrai. Para que o relato seja divertido e cativante, uma espécie de “plataforma retrospectiva” é essencial: dá mobilidade ao autor, que pode relatar a ação com todos os detalhes do evento, refletindo então sobre ela sob uma perspectiva temporal e local situada fora da ação.
O autor pode ser como um “anfitrião" que conhece o assunto de dentro e entretém com um texto agradável, com o uso da ironia próprio das digressões, guiando o leitor pela história, saindo da ação para a informação digressiva e voltando à ação.
Esta é a técnica comum a textos literários que se tornou uma das mais marcantes características do New Journalism: a digressão. Em literatura, é empregada em momentos onde a ação interessante está para acontecer. Sua função é fazer com que o leitor retorne ao assunto principal após a leitura do trecho digressivo com uma melhor perspectiva dos eventos.
VII – Estruturação
O jornalismo literário é feito sobre narrativas e construção de cenas. O jornalista que se utiliza de técnicas literárias para escrever suas matérias pode estruturar uma história e suas digressões da mesma maneira que um escritor de ficção. Mas a digressão deve ser informativa, para que o leitor volte ao ponto da história de onde foi transportado antes com a visão realmente ampliada pela digressão. A ordem das cenas, os pontos de digressão, a intensidade com a qual se deve desenvolver cada elemento envolvido na história, tudo isso deve ser estruturado de maneira a considerar os efeitos que causarão no leitor e como pode trazê-lo mais próximo à experiência do autor.
VIII – O significado construído entre autor e leitor
Se a estruturação e a linguagem são planejadas e executadas com habilidade pelo autor, o leitor sente que vai chegar a algum ponto com a leitura, que o trabalho de ler vale a pena. O autor deve ser capaz de criar não apenas seqüências de parágrafos bem escritos e organizados com clareza, mas seqüências de sensações e experiências emocionais e intelectuais, capazes de envolver o leitor da maneira que um bom romance ou filme faz.
1.3 “Sinatra está gripado” – “A Voz” investigada por Gay Talese
Embora recuse o rótulo, Gay Talese é apontado como um dos precursores do Novo Jornalismo. Tom Wolfe foi quem primeiro o identificou assim, nas páginas da revista Esquire, cuja equipe tinha em Talese uma de suas estrelas na década de 60. Foi na Esquire que Talese publicou “Sinatra Has a Cold” (“Sinatra está gripado”), um longo artigo baseado em exaustiva pesquisa e observação paciente, resultando em um apurada descrição da personalidade e do mundo do cantor Frank Sinatra.
Gay Talese não se sente confortável sob o rótulo “Novo Jornalismo” porque, segundo explica em seu website , seus “romances com nomes reais” não são escritos como uma cruzada reformista. “São a minha resposta altamente pessoal ao mundo, enquanto um outsider ítalo-americano,” afirma.
Para escrever “Sinatra has a cold”, Talese aproveitou seu profundo interesse por sua própria veia ítalo-americana. Nascido em 7 de Fevereiro de 1932 em uma família de origem italiana, o autor encontrou um ponto em comum entre sua própria biografia e a de cantor. O meticuloso trabalho de aproximação do tema Sinatra figura em sua bibliografia (que contém ainda livros sobre a Máfia italiana, tendo sido ele o primeiro escritor a investigar o submundo dos mafiosos de dentro com “Honor Thy Father”) beneficiou-se desse ponto em comum, garantindo ao autor explicar a dimensão que definiu como “siciliana” no cantor, além de obter simpatia e acesso por causa de suas origens. O trabalho é uma de suas “respostas” de ítalo-americano ao mundo, além de constituir um exemplo irretocável de como o Jornalismo Literário pode ser usado em jornalismo cultural. O método empregado por Talese nesta reportagem tem seu alicerce em um tripé fundamental para o jornalista literário, englobando algumas das “regras” sugeridas por Mark Kramer, e pode ser assim exemplificado, de acordo com a leitura de “Sinatra Has a Cold”:
I – Contextualizando Sinatra
Talese abre o texto explicando que o cantor, que esteve calado por horas, está prestes a dizer algo.
“Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon em uma das mãos e um cigarro na outra, está parado em um canto escuro do bar entre duas loiras atraentes embora desbotadas que se sentaram esperando que ele dissesse alguma coisa. Mas ele não disse nada; ele se manteve em silêncio durante a maior parte da noite, exceto agora neste clube privado em Beverly Hills; ele parecia ainda mais distante, olhando através da fumaça na semi-escuridão para um salão atrás do bar onde dúzias de jovens casais acotovelam-se à volta de pequenas mesinhas ou se sacodem no centro da pista ao alarido metálico da música folk-rock que sai do estéreo. As duas loiras sabiam, assim como os quatro amigos de Sinatra que estavam por perto, que era uma má idéia forçar uma conversa quando ele estava neste clima de silêncio taciturno, um ânimo dificilmente incomum durante a primeira semana de Novembro, um mês antes de seu 50º aniversário.”
A reportagem, aberta com Sinatra em silêncio em uma boate, ganha uma digressão em que Talese mantém em suspense a seqüência desta cena específica. Ele não relata imediatamente as ações dos personagens a quem fez referência no parágrafo de abertura. Ao invés de entregar respostas às questões “o quê”, “como”, “quando” sobre aquele lugar e aquelas pessoas descritos no primeiro parágrafo, o que poderia ser logo fornecido em uma matéria mais simples sobre o cantor, Talese oferece um panorama geral do que Sinatra estava vivendo em sua carreira e sua vida pessoal, remontando a eventos ocorridos dez anos antes e a outros nem tão distantes, como a superexposição de seu relacionamento com a atriz Mia Farrow (então com 20 anos de idade) na mídia; a invasão de sua privacidade por uma equipe da rede de TV CBS, por conta da gravação de um documentário sobre sua vida em que chegava inclusive a especular sobre suas ligações com membros da máfia italiana; a preocupação do cantor em relação ao especial que gravaria para a NBC: resfriado, Sinatra era, nas palavras de Talese, “Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível”, uma vez que um simples resfriado podia lhe roubar “sua jóia”, sua voz, “cortando o âmago de sua confiança, e afetando não só sua própria consciência mas também causando um tipo de corrimento nasal psicossomático entre dúzias de pessoas que trabalham para ele, bebem com ele, o amam, dependem dele para seu próprio bem-estar e estabilidade.” Um resfriado em Sinatra teria o poder de “enviar vibrações por toda a indústria do entretenimento e para além dela assim como o Presidente dos Estados Unidos, adoecido de repente, pode sacudir a economia nacional”. Este é o gancho para que Talese nos guie até outro bar, em Nova Iorque, o Jilly´s, onde o cantor possuía uma mesa cativa, a qual não podia ser ocupada por mais ninguém, mesmo quando Sinatra não estava na cidade. Aqui será delineado um dos lados do perfil de Sinatra que Talese define como “Il Padrone”, o chefe, “majestoso e humilde” ao mesmo tempo; um tipo siciliano para quem meias verdades e meias decisões não são suficientes. Ele quer tudo “all the way”, até o fim. Exige 100% de fidelidade de seus amigos, a quem oferece em troca proteção, amizade, presentes, TUDO de Sinatra. Todos que conhecem Sinatra e estão em Nova Iorque vão até sua mesa no Jilly´s para “prestar seu respeito ao padrinho”. O outro lado da personalidade de Sinatra surge quando está com gente do showbusiness como Lisa Minelli e Sammy Davis Jr., fazendo piadas e bebendo: é o “Swinger”, um boa-vida engraçado e charmoso. Ambos os tipos são anacrônicos.
Só após esta digressão o leitor fica sabendo o que realmente acontece naquele cenário instaurado por Talese no primeiro parágrafo. Sinatra reaparece no bar de Los Angeles, agora contextualizado pelo recuo no tempo oferecido por Talese. O comportamento de Sinatra e seus amigos na boate agora faz sentido no contexto “O Chefe/O Boa Vida” apresentado pelo autor. A cena é retomada de onde parou:
Agora Sinatra disse algumas palavras às loiras. Então, virou-se e começou a caminhar em direção à sala de sinuca. Um dos amigos de Sinatra aproximou-se para fazer companhia às garotas. Brad Dexter, que tinha ficado em um canto falando com outras pessoas, seguiu atrás de Sinatra.
Segundo Mark Kramer afirma em suas “Regras Nada Rígidas Para Jornalistas Literários”, o autor precisa se basear em uma estrutura de “contador-de-estória”, construindo digressões que sugiram um destino que valha a pena ser atingido. Digressões que não abandonam seu tema mas o ampliam prendem o interesse do leitor. E é precisamente para ampliar a dimensão de Sinatra aos olhos do leitor que Talese digressiona.
II – Endossando a contextualização
A observação do comportamento das pessoas ao redor do cantor e da fala de seus amigos oferece detalhes consistentes e é o que endossa as definições do autor sobre a personalidade de Frank Sinatra. Aqui, Talese demonstra credibilidade, ganhando a confiança do leitor apresentando diálogos e cenas que só uma observação muito próxima poderia permitir.
Brad Dexter que, anos antes, havia salvado a vida de Sinatra evitando que o cantor se afogasse, no Havaí, afirma: “Eu mataria por ele”. Em seguida, Talese nos conta que Dexter foi feito vice-presidente da produtora de Sinatra e ganhou um escritório luxuoso próxima à sala de Sinatra. A fala e as credenciais de Dexter justificam no texto o lado “Il Padrone”, passional e siciliano, de Sinatra.
Um retrato do lado “Boa-vida” e do círculo de amizades do showbusiness de Sinatra vem em outra cena de bar, desta vez de volta no clube The Sahara, onde o comediante Don Rickles começa um jogo de piadas com o cantor e seu séquito, entre eles Dean Martin, o dono do Jilly´s, Jilly Rizzo, e Leo Durocher, um amigo próximo de Sinatra:
Quando o grupo de Sinatra entrou, Don Rickles não podia ter ficado mais satisfeito mais. Apontando para Jilly, gritou: “Como você se sente sendo o trator de Sinatra?... ééé, Jilly continua andando na frente de Frank para limpar o caminho.” (...) Ele então concentra-se em, Sinatra, sem esquecer de mencionar Mia Farrow, nem a peruca que Frank usava, ou que ele estava acabado como cantor, e, quando Sinatra riu, todos riram, e Rickles apontou para Bishop: “Joey Bishop continua verificando com Frank o que é engraçado”. Então, depois que Rickles contou algumas piadas de judeu, Dean Martin levantou-se e gritou: “Ei, você tá sempre falando de judeus, nunca sobre italianos,” e Rickles cortou com essa: “Para que precisamos de italianos – tudo que eles fazem é manter as moscas longe de nosso peixe.” Sinatra riu, todos riram, e Rickles prosseguiu dessa maneira por quase uma hora, até Sinatra, levantando-se, dizer:
“Tá legal, vamos lá lá, acabe com isso. Eu tenho que ir.”
“Cale a boca e sente aí!” Rickles mandou, “Eu tive que agüentar você cantando...”
“Com quem você pensa que está falando?” Sinatra gritou de volta.
"Dick Haymes," Rickles respondeu, e Sinatra riu novamente, e então Dean Martin, derramando uma garrafa de uísque sobre sua cabeça, molhando todo o seu smoking, socou a mesa. “Quem acreditaria que aquele sujeito cambaleante viraria uma estrela?”, Rickles disse.
Embora Talese não se coloque, neste momento, em foco na cena, fica subentendido, pela maneira como ela é desenvolvida no texto, que ele está presente quando a ação acontece. Caso tivesse apenas ouvido a história de alguns dos presentes, seu estilo denunciaria tratar-se de um relato de segunda mão. Sua presença discreta no ambiente só pode ser percebida pelo detalhe e dinamismo que confere aos diálogos da cena. “Jornalistas literários tomam notas elaboradas para reter citações precisas,” afirma o autor de “Breakable Rules For Literary Journalists”. É a partir dessas falas citadas com precisão que Talese consegue reconstruir cenas inteiras para o leitor.
III – Ouvindo para revelar
Em seu livro “Origens de Um Escritor de Não-ficção”, Gay Talese explica que aprendeu com a mãe, dona de uma loja de roupas, a importância de ouvir com paciência, sempre demonstrando interesse. Catherine DePaolo Talese costumava ouvir suas clientes com grande atenção por detrás do balcão da “Talese Townshop”. Uma lição que aprendeu assistindo à evolução dessas confissões feitas à sua mãe é que nunca deveria interromper, nem mesmo quando a pessoa demonstrasse dificuldade ou hesitação ao se expressar. Segundo ele, é justo no momento em que demonstra maior imprecisão em seu discurso que muita coisa sobre é revelada sobre quem fala. Suas pausas, evasões, mudanças repentinas de assunto – tudo isso seriam indicadores do que as deixa preocupadas, embaraçadas, irritadas ou do que guardam como muito pessoal ou não deve ser revelado para ninguém.
Também cheguei a ouvir gente discutindo com minha mãe assuntos os quais, antes, já havia percebido que costumavam evitar – um tipo de reação que eu acho que tinha menos a ver com a natureza curiosa dela ou suas perguntas colocadas sempre com muita delicadeza, do que com a aceitação gradual das pessoas em relação a ela como alguém confiável.
Durante o período que um jornalista literário acompanha seu assunto, até mesmo uma relação que começa estritamente profissional tende a tornar-se mais como uma parceria ou até amizade. O tempo e a atenção dedicada pelo escritor ao tema e pessoas ligadas a ele é grande e isso tende a derrubar barreiras de intimidade entre eles. O importante, segundo Mark Kramer , é que a posição do escritor seja sempre clara e verdadeira em relação à sua fonte, a quem devem ser mostradas reportagens anteriores do escritor realizadas nesse molde para que elas compreendam do que se trata seu trabalho. Para algumas pessoas, o escritor torna-se uma boa companhia, um confidente. A ele, elas contarão tudo, coisas que, antes da convivência, talvez sequer imaginassem que revelariam. O escritor deve, portanto, deixar claro que continua sustendo sua intenção inicial de documentar e escrever sobre o que lhe é contado.
As regras sugeridas por Mark Kramer e empregadas por Gay Talese e outros cujo trabalho é reconhecido como Jornalismo Literário, funcionam como um caminho para que se produza um trabalho sobre fatos reais que seja leitura tão instigante quanto a de um bom romance. Não são regras fixas, são “quebráveis”, como diz o título do texto de Kramer; e alguns jornalistas, de fato, modificaram muito dessa cartilha para que pudessem construir sua voz própria e moldar o jornalismo literário à sua maneira. Um desses jornalistas é o norte-americano Hunter S. Thomspon.
2. Hunter S. Thompson e o Jornalismo Gonzo
Hunter Stockton Thompson, assim como o gim, o bourbom, o tabaco e o Kentucky Derby, é um típico produto de Louisville. A cidadezinha do Kentucky, no sul dos Estados Unidos, é conhecida por sua produção de bebidas e cigarros, além de abrigar o tradicional, e por vezes violento, Kentucky Derby, um evento onde todos os anos, desde ____, a platéia costuma consumir uma inacreditável quantidade de bebida e mantém a polícia ocupada com brigas, desmaios e outras ocorrências relacionadas ao consumo excessivo de álcool.
Thompson nasceu em meio ao período da Depressão, em 18 de Julho de 1939 (as biografias divergem quanto ao ano, registrado algumas vezes 1937), filho de Virginia Ray e Jack R. Thompson, um agente de seguros. Seu primeiro trabalho como jornalista foi publicado no Southern Star, um jornal mimeografado que custava três centavos de dólar, consistindo em duas páginas de notícias locais, opinião e anúncios, e editado por Walter Kaegi, Jr., de dez anos de idade. Thompson, na época, era uma criança hiperativa de oito anos de idade. Data deste mesmo ano seu primeiro atrito com a lei; ele e um grupo de garotos vandalizaram um banheiro masculino do Parque Cherokee, atirando latas, espalhando lixo e pichando as paredes. O grupo foi pego pela polícia e levado à delegacia, onde uma ocorrência chegou a ser preenchida.
Os pais de Thompson eram ambos alcoólatras; Jack, que sofria de um distúrbio neurológico conhecido como myasthenia, costumava ter surtos violentos em casa e bater nos filhos. Quando Jack morreu, aos 57 anos, de um ataque cardíaco, Thompson, aos 15, começou a beber também. Se, até esse momento, era um rapaz bastante ligado aos esportes (tendo inclusive começado um clube de baseball com os amigos), agora bebia e trabalhava no balcão de doces de uma lojinha; não hesitava em comer os doces que deveria vender e logo que começou a ganhar peso, teve que deixar o time Castlewood. Sem a disciplina imposta pelo pai em casa e exigida pelo esporte, começou a procurar outras atividades onde pudesse despejar sua energia. Para continuar na esfera do esporte, que permaneceria como um interesse prioritário (junto a outro que se somaria mais tarde, a política) por toda a sua vida, escrevia sobre o assunto no Southern Star, que àquela altura já crescera em público e número de páginas. Mas o trabalho no periódico não era o suficiente para mantê-lo na linha, nem mesmo na escola, onde conseguia convencer os amigos a escapar para beber. Nesse período, ele e outros alunos com problemas de conduta formavam o grupo que denominaram “The Wreckers” (algo como “Os Quebradores”) , cuja função era, basicamente, praticar atos de vandalismo pela cidade.
Aos 17 anos, Thompson foi condenado a sessenta dias de prisão por um assalto. Passou seu aniversário de 18 anos na cadeia. Por sugestão do juiz que o condenara, aceitou alistar-se na força aérea e, na base de Eglin, sua fama de arruaceiro delineou-se rapidamente: Thompson era considerado um “problema moral”, embora todos admitissem que suas matérias para a Command Courier, a revista da base, eram interessantes. Quando obteve dispensa de Eglin, com honras, - apesar das queixas em que configurava desobediência aos oficiais e normas da base -, Thompson aceitou um convite da El Sportivo para residir em Porto Rico, escrevendo sobre boliche para a revista. Em pouco tempo, decepcionado com a monotonia do trabalho na El Sportivo, retornou aos Estados Unidos para, em 1962, tornar a viajar, desta vez à América do Sul, onde atuou como correspondente da revista National Observer. Thompson enviava para a National Observer reportagens que englobavam os costumes locais e suas próprias observações sobre os lugares que visitava. De volta aos EUA, meses depois, cobriu suas primeiras convenções.
Com tudo isso, Thompson não tardou a enxergar no jornalismo uma oportunidade de conhecer o mundo e garantir seu sustento enquanto, paralelamente, poderia a investir em uma carreira literária. O interesse pela literatura e sua imersão no mundo do jornalismo, aliados à natureza irrequieta e ao temperamento explosivo de Thompson, resultariam no surgimento de uma diferenciação de Jornalismo Literário, mais ligada à contracultura: O jornalismo Gonzo.
2.1 O que é Gonzo?
De acordo com o próprio inventor do gênero, que é também seu único praticante, Hunter S. Thompson, Gonzo é:
“um estilo de reportagem baseada na idéia do escritor William Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo – e os melhores jornalistas sempre souberam disso.”
Isto não significa que a ficção seja “mais verdadeira” que o jornalismo – ou vice versa – mas que tanto “ficção” quanto “jornalismo” seriam o que Hunter denomina “categorias artificiais”; ambas as formas, quando realizadas da melhor maneira possível, seriam dois caminhos para atingir o mesmo fim.
O jornalista gonzo deve estar presente na ação que descreve, sendo capaz de vivenciar e documentar a experiência ao mesmo tempo, com “o talento de um grande jornalista, o olho de um fotógrafo, e os culhões de um ator”. Uma das características mais marcantes do Jornalismo Gonzo é que suas matérias são escritas sempre com uso da primeira pessoa no texto. O jornalista gonzo dispensa as pretensões à objetividade e escreve quase sempre em primeira pessoa. Suas matérias não são mera narrativa, mas relatos de experiências em que participa da ação. O “eu” do jornalista interfere na matéria: Nela, reportagem e repórter não estão separados, viabilizando através deste estilo crítica, paródia, ironia e alerta. O riso, a gafe, o erro, o inesperado, podem produzir algum conhecimento.
Gonzo é uma espécie de Buñuel do jornalismo. Mais do que tirar fotos engraçadas e escrever textos espirituosos, quer rir de si mesmo, da sua cultura, do próprio ato de rir. Assim como o cineasta espanhol, o gonzo quer mostrar a família defecando na sala e almoçando no banheiro. Para isso, é importante o jornalista partir do "eu", da experiência ao vivo, in loco. Para depois recriar a história, ao narrá-la. Não como quem enuncia uma verdade, mas como quem faz um convite. Você aceitaria?
Para o inventor do Jornalismo Gonzo, Hunter S. Thompson , a objetividade no jornalismo é um artigo raro, senão inexistente: “Todos procuramos por ela mas quem pode apontar a direção? Não se dê ao trabalho de procurá-la em mim – não sob nenhuma linha escrita por mim; ou por qualquer outro em que se possa pensar. Por este prisma, o Gonzo é um jogo com a definição de objetividade jornalística: Através do uso do “eu” em seu discurso, põe em dúvida a apreensão de toda a complexidade que o leitor costuma pensar ter após ler uma reportagem – Até que ponto é possível realmente saber tudo o que se passou em um evento reportado por um jornalista da maneira tradicional, se o relato é “imparcial” e “objetivo”? E até onde podemos confiar no que relata um jornalista gonzo? – O jogo de perspectiva leva o leitor a questionar tudo o que lê, a pensar a informação e não apenas ler e aceitar o que lhe é entregue como um fato, passivamente.
O Jornalismo Gonzo ganhou as páginas de veículos como a revista Rolling Stone, tornando-se popular na década de 60, por abordar temas ligados à contracultura de sua época – festivais de rock, drogas, hell´s angels, entre outros, são temas que atraíram profundamente Thompson ao longo de sua carreira. Neste âmbito, o Jornalismo Gonzo oferece outro tipo de jogo que também tem como objetivo deslocar conceitos e mostrar um outro lado da tão celebrada e disseminada cultura norte-americana e do american way of life. “Eu não obtenho satisfação alguma com a velha e tradicional ótica do jornalista – ‘Eu cobri a história. Eu dei uma versão equilibrada,’ Thompson disse em uma entrevista à revista “Atlantic Unbound”. “O jornalismo dito objetivo é uma das razões pelas quais a política na América tem podido se mostrar tão corrupta por tanto tempo. Você não pode ser objetivo sobre Nixon. Como você pode ser objetivo sobre Clinton?”, concluiu.
2.2 O jogo da consciência
Drogas e bebidas alcóolicas fazem parte do panorama descrito por Hunter S. Thompson na grande parte de suas reportagens. Explicitar o uso de drogas em seus textos foi a maneira encontrada pelo jornalista de derrubar uma abordagem freqüentemente hipócrita sobre o assunto e mostrar como era fácil e comum portar e usar drogas nos Estados Unidos. A cultura norte-americana estava infestada por alucinógenos, álcool, barbitúricos de todo tipo e, para retratá-la de maneira que englobasse cada aspecto de sua constituição, ou cada aspecto que visível e óbvio, o uso e abuso de drogas não poderia ser colocado para debaixo do tapete. Não em reportagens Gonzo.
O primeiro relato aberto de uso de drogas pesadas em um trabalho de Hunter Thompson surgiu em sua reportagem sobre os Hell´s Angels, publicada em 1967 com o título de “Hell´s Angels: A Strange and Terrible Saga”. Em 1965, Thompson imergiu no universo do grupo de motoqueiros para escrever um artigo para a revista Nation. Naquela época, os Hell´s Angels tinham ganhado as manchetes de jornais e revistas nos Estados Unidos como uma ameaça graças a um relatório escrito por Thomas C. Lynch, então secretário de segurança da Califórnia. Seu relatório, conhecido como o Lynch Report, alimentava matérias sensacionalistas sobre os Hell´s Angels na imprensa norte-americana, cujos destaques eram denúncias de estupro, vandalismo e brigas causadas pelos motoqueiros. Trazia, por exemplo, uma denúncia de estupro que havia sido feita pela vítima às risadas, sem que o exame de corpo delito tivesse encontrado sinais de penetração forçada. Thompson procurou desmistificar os Angels, alternando em seu texto trechos do Lynch Report e relatos de sua própria experiência com o grupo.
Thompson decidiu acompanhar o grupo de motoqueiros como jornalista (e não secretamente ou infiltrado), para que pudesse verificar com os próprios olhos como agiam os Hell´s Angels. Seu primeiro encontro com eles não pareceu muito promissor: entre ameaças de surra (Thompson poderia, afinal, servir de exemplo para qualquer outro jornalista que quisesse tentar a aventura depois dele) e hostilidade desenfreada, Thompson conseguiu convencê-los de que queria fazer um trabalho diferente sobre os Angels do que o que vinha sendo apresentado na imprensa então. Por nove meses, Thompson seguiu os Hell´s Angels, o que, inevitavelmente, o levou a abordar o uso de drogas entre o grupo. Isto foi feito sem meias palavras ou qualquer contorno que pudesse distanciá-lo da ação como um observador imparcial.
Os Angels insistem em dizer que não há viciados em drogas em seu clube, e, para todos os efeitos legais e médicos, isso é verdade. Viciados são centrados; sua necessidade física por qualquer que seja a droga em que estejam viciados os força a serem seletivos. Mas os Angels não têm foco algum. Eles devoram drogas como vítimas da fome soltas em um raro banquete. Eles usam qualquer coisa que esteja disponível e se o resultado disso forem gritos e delírio, então que seja.
Passagens como esta mostram que Thompson não nega que os Hell´s Angels vivessem na marginalidade. O jornalista dimensionou os fatos de acordo com as ações dos membros do grupo, sem alimentar o sensacionalismo com que vinham sendo tratados no jornal.
Foi no período passado junto aos Hell´s Angels que Thompson experimentou o LSD pela primeira vez. O jornalista Ken Kesey, que o visitou em um agrupamento de Angels, ofereceu a droga e todos usaram. Foi depois dessa primeira experiência que Thompson passou a usar drogas com freqüência. Em suas reportagens, por estar presente na ação e escrevendo em primeira pessoa, tornou um hábito, a partir dali, descrever situações sob o ponto de vista exagerado e distorcido que adquiria quando ingeria drogas. Relatava, inclusive, que drogas havia ingerido. Ao tratar abertamente de sua relação com drogas legais e ilegais, Thompson oferece uma segunda linha de leitura dentro do texto, quase subliminar, que toca assuntos tão diferentes como a criminalidade e a psiquiatria (o “adrenocroma”, uma hormônio produzido pelo corpo ou liberado pela ingestão de alguns tipos de drogas, surge em digressões de Thompson por conta de sua influência em casos de esquizofrenia), além de questionar a imagem “certinha” mantida para valorizar a profissão de jornalista: ele torce padrões de credibilidade (o que relata é novo e real... mas... não está drogado enquanto o faz? Isso é confiável? É apropriado? Se é real e é escrita instigante e é uma reportagem relevante, então, o que é importante e o que é apropriado e digno de credibilidade?) É uma das maneiras usadas por Thompson para deslocar padrões pré-estabelecidos sobre regras de jornalismo e mexer com noções altamente questionáveis como a da credibilidade e da isenção, já que aproveita suas epifanias alucinadas para liberar opinião em meio ao relato do fato. É sua maneira franca de mostrar que não há a forma asséptica e isenta de desejos, ideologias e interesses no discurso do jornalista.
“Medo e Delírio em Las Vegas” é o exemplo mais radical do que Hunter Thompson podia atingir em relação ao discurso aberto sobre as drogas. O livro cravou definitivamente seu nome na cultura norte-americana e projetou Thompson mundialmente. O autor o considera um “experimento gonzo fracassado”, em que seu método teria fugido ao controle algumas vezes e, justamente por isso, teria sido o experimento mais radical de jornalismo gonzo que Thompson já realizou. Sua idéia era, a princípio, preencher um caderno grosso com relatos dos fatos conforme eles fossem acontecendo durante sua viagem a Las Vegas e publicar o resultado, suas notas, sem edição. O que Hunter acabou conseguindo foi um livro em que ficção e realidade encontram-se misturadas de maneira que não é possível ao leitor distinguir o que é mera invenção de Thompson e o que teria realmente acontecido. Para o autor, isso não é um defeito de sua narrativa mas uma característica dela que não deve ser renegada. Desde suas primeiras reportagens para a National Observer, inventar fatos ou relatar acontecimentos que não tinha presenciado faziam parte do seu estilo. Toda maneira de ampliar a visão do leitor acerca do que pretendia mostra-lo era considerada um expediente válido para Thompson, assim como costumava ser para alguns jornalistas literários que inventavam personagens e diálogos que facilitassem a exposição de algum ponto que, para uma testemunha do fato, seria óbvio, mas para o leitor talvez ficasse pouco claro. Mesmo sem uma linha definida entre realidade e ficção, Thompson consegue traduzir a atmosfera de Las Vegas traçando um panorama da cidade baseado em experiências nas quais é o centro da ação. Justamente por não oferecer distinção entre o que inventou e o que vivenciou, Thompson é capaz de oferecer a dimensão exata da loucura que era estar em Las Vegas: o que há de confuso e embaçado em seu relato traduz para o papel a experiência paranóica de uma viagem em que o repórter consumiu um variado arsenal de drogas, legais e ilegais, e observou e interagiu com a estranha fauna local, formada por jogadores inveterados, prostitutas, junkies, leões-de-chácara, policiais, e outros.
O livro surgiu a partir de um convite da revista Sports Illustrated oferecido a Thompson enquanto ele cobria as investigações sobre a morte do jornalista Ruben Salazar em Los Angeles, junto com seu advogado Oscar Acosta. Salazar, que representava na imprensa uma voz para a população hispano-americana, tinha sido morto por um policial diante de diversas testemunhas, em um bar de um bairro chicano, e Acosta promovia na cidade uma espécie de cruzada contra a impunidade do assassino de Salazar, o que fazia dele um alvo para a polícia, que queria ver o caso encerrado sem que qualquer homem de seu quadro fosse envolvido na confusão. Acosta, àquela altura, andava cercado de seguranças para que pudesse continuar seu trabalho. Hunter Thompson, por sua vez, também encontrava-se em situação delicada: por um lado, era visado pelos chicanos do barrio, revoltados contra americanos brancos desde a morte de Salazar e as investidas da polícia contra suas manifestações nas ruas; por outro, ser amigo de Acosta fazia dele um inimigo da polícia. O convite da Sports Illustrated surgia em um bom momento e precisava ser aproveitado. Thompson seguiu para Las Vegas para cobrir o Mint 400, uma espécie de rally de motocicletas no deserto, e levou o amigo advogado junto, à guisa de descanso de toda a pressão que o Caso Salazar representava. Sua ida para Las Vegas seria “uma busca ao sonho americano”, fosse ele o que fosse (e isto jamais fica claro no livro). Mas para Hunter, voraz consumidor de drogas, e seu advogado, que também não passava muito tempo sóbrio, esta busca deveria ser guiada por “dois sacos de maconha, setenta e cinco gomos de mescalina, cinco folhas de ácido, um saleiro meio cheio de cocaína, e uma grande variedade de pílulas, anfetaminas, tranqüilizantes... Também tequila, uma caixa de Budweiser, um litro de éter e remédios para o coração”. A América seria finalmente visualizada em toda a sua loucura e compreendida como deveria: um pesadelo entorpecido. O sonho americano tinha um lado bad trip ao qual não era possível fechar os olhos, não com a consciência alterada e o corpo vagando enlouquecido por uma cidade como Las Vegas. Ele estava ali, as drogas também, e isso era um fato: Dois elementos indissociáveis e nenhum artifício para tornar o repórter uma entidade pairando, imparcial e objetiva, acima do bem e do mal na ação que descreve.
A revista Rolling Stone interessou-se por publicar a saga de “Fear and Loathing in Las Vegas”
3. A revista Rolling Stone
A revista Rolling Stone foi fundada pelo jornalista Jann S. Wenner em Novembro de 1967, em São Francisco (EUA). Sua redação funcionava em cima de um pequeno bureau, uma loja de impressão, no segundo andar. Em seu primeiro editorial para a revista, Wenner esclareceu ao leitor a linha que a RS pretendia seguir: “(A revista) não é sobre música apenas, mas sobre as coisas e atitudes que a música engloba”. Sua intenção era “cobrir rock and roll com inteligência e respeito”. “Com o passar do tempo”, escreveu em 1993, “passei a interpretar aquela ‘carta-régia’ de maneira bem mais ampla. Entendemos que a música era a cola que segurava toda uma geração junta. E através da música, idéias estava sendo comunicadas sobre relacionamentos, valores sociais, ética política e a maneira como conduzimos nossas vidas. A mídia mainstream na época – filmes, TV, jornais e revistas – estava dando atenção muito escassa ao que viria a se tornar uma das maiores pautas de todos os tempos: a convulsão social de uma geração na América.” O que a RS fez foi dar voz a jovens escritores dispostos a percorrer todos os pontos onde esta “convulsão social” pudesse ser verificada e reportar o que estava acontecendo no país sob novas perspectivas proporcionadas por essa revolução de comportamento. A linguagem, a abordagem jornalística, o estilo – tudo em uma reportagem da RS naquele período passou a ecoar as mudanças que sua cobertura jornalística procurava. O escritor era testemunha e muitas vezes um participante do fato que reportava. Algumas vezes, o círculo de que fazia parte o jornalista, dentro ou fora de suas conexões com o showbusiness, acabava se revelando em alguma pauta que escrevesse para a RS. Um ditado muito comum nos corredores da revista àquela época, segundo a jornalista Marcelle Clements, dizia que “Se você e uma outra pessoa estão fazendo a mesma coisa, é uma coincidência. Se três estão fazendo a mesma coisa, é uma matéria.” Clements escreveu para a RS em 1986 um detalhado artigo no qual investigava uma mudança nos hábitos de sua geração, a geração flower power. Ela observara a mudança a partir de si mesma e depois em seus amigos; o grupo que, na década de 60, usava maconha com freqüência, agora, encaixado em “papéis sociais da vida adulta”, não gostava mais do alucinógeno. Sua curiosidade em relação àquela mudança, observada primeiramente em seu círculo íntimo, levou a jornalista a investigar entre médicos, departamentos de pesquisa universitários, traficantes, usuários, comitês pró-legalização da maconha, polícia e agências de informação do governo durante seis meses. Marcelle pesquisou e escreveu sobre aquela idéia que havia começado a se delinear por conta da observação de uma suposta mudança de hábitos entre ela e seus amigos. Quando a matéria foi publicada, levantou tanto interesse da comunidade e da mídia que a jornalista chegou a fazer a rota dos talk-shows americanos e foi assunto de matérias em jornais e revistas. Uma das conclusões a que chega Marcelle é que, hoje em dia, o uso “liberal” de marijuana feito na década de 60 parece banal porque agora foi adotado em larga escala por gente fundamentalmente “careta”. Por careta, sua definição não compreende a pessoa que não usava ou usaria drogas mas todos que, mesmo usando qualquer artifício que altere seu estado mental, seja incapaz de alterar a sua maneira de pensar em relação a valores que encontravam voz na contracultura da década de 60 e desapareceram quando “o sonho acabou”, desembocando na “década do ‘eu’” (descrita por Tom Wolfe em livro homônimo) e nos chamados yuppies dos anos 80.
Era freqüente, portanto, que a inspiração para pautas sobre comportamento para a RS surgisse a partir da observação dos hábitos de gente comum – uma característica que a redação da revista compartilhava com jornalistas literários mais velhos.
O perfil da revista no início de sua história deve muito à trajetória dos repórteres que contratava naquele tempo. Como conta Wenner, “Eles chegavam de todos os lugares e de todas as maneiras.” David Harris escrevera ao editor da cadeia, onde cumpria uma pena de dois anos por recusar-se a prestar serviço militar; acabou escrevendo uma matéria sobre um herói de guerra que ficara paralítico em batalha, na qual cruzava sua história de dissidência com a do entrevistado. Joe Eszterhas, então repórter de um jornal chamado “Cleveland Plain Dealer”, surgiu na redação da revista levantando suspeitas entre a equipe por conta de sua aparência (“os rapazes da correspondência achavam que ele era da narcóticos”, segundo Wenner). Acabou escrevendo exposes sobre agentes da narcóticos para a RS. Quanto a Hunter S. Thompson, uma das maiores estrelas que a revista já teve em seu staff, apareceu na redação de São Francisco pela primeira vez usando uma peruca grisalha, com um saco cheio de “Deus-sabe-o-quê” em uma das mãos e um pacote com seis cervejas na outra. Falou por uma hora seguida sem parar, e conseguiu vender sua primeira matéria para a revista: “Freak Power in The Rockies, sobre sua tentativa quase bem sucedida de tornar-se xerife em Aspen, Colorado. Depois disso, escreveu “Fear and Loathing...”, além de vários outros artigos para a RS. Tom Wolfe também figura entre os nomes famosos que já integraram o quadro da RS. “The Right Stuff”, livro de Wolfe lançado em (?), é uma extensão de um artigo publicado por ele na RS em 1973, chamado “Post-Orbital Remorse”, sobre o programa espacial “Apollo”.
Lawrence Wright, co-editor da revista em 1985, explica a fórmula da revista em uma frase sobre sua primeira equipe. Segundo ele, era formada por “diabos literários que deixaram de lado as convenções jornalísticas e tabus sociais para encontrar novas maneiras de contar os fatos”.
A responsabilidade de um jornalista que escreve para a RS, segundo Wenner, é “não apenas dar a última palavra sobre um assunto, mas oferecê-la sob um ponto de vista novo e relatá-la de forma poderosa”. Os critérios da revista tinham alguns pontos em comum com o jornalismo literário, usando-os de uma forma ainda mais livre das convenções acadêmicas, usando-os de maneira ainda mais livre que os veteranos do gênero. Jann Wenner lista algumas características que uma matéria precisava ter para ser publicada pela RS:
“Tem que ser sobre algo interessante e importante” ; não pode repetir o que pode ser encontrado em outro veículo; “você tem que ir até lá e apurar/reportar o diabo a quatro sobre o assunto, o que quer dizer: “seja passional, envolva-se, arrisque-se, escreva bem – muito, se necessário – e seja o mais apurado possível em cada detalhe; e no final, dizer a verdade sobre o que você pensa. Esta é a responsabilidade dada aos jornalistas e editores da Rolling Stone.”
Em 1993, Jann Wenner e o co-editor Robert Love lançaram um livro pela editora Virgin, “The Best Of Rolling Stone”, reunindo reportagens publicadas pela revista em 25 anos. Além de “Fear and Loathing in Las Vegas”, de Hunter Thompson, há os destaques em jornalismo cultural, como os textos assinados por Dave Marsh (sobre a cantora Patti Smith) e Greil Marcus (sobre Elvis Presley). Marsh e Marcus, que figuraram no quadro da RS na década de 70, eram influenciados pelo amigo jornalista Lester Bangs, cujo estilo de crítica de música análogo ao gonzo causou sua demissão da revista em 1973.
3.1 RS: Impondo limites ao gonzo
No final da década de 60 e durante a década de 70, a RS havia feito de sua redação uma espécie de enclave gonzo no jornalismo norte-americano, contando com dois pólos: de um lado, o criador do gênero Hunter S. Thompson; de outro, o crítico de rock Lester Bangs. Jann Wenner, o editor, parecia disposto a abrir um espaço permanente para o estilo quando, após ler cerca de 20 laudas de “Fear and Loathing in Las Vegas”, decidiu publicar o experimento gonzo de Thompson nas páginas da revista, em forma seriada. Como “Fear and Loathing” era considerada mais uma versão romanceada dos fatos do que uma matéria propriamente dita, a liberdade dada a Thompson foi relativamnete maior do que desfrutou Lester Bangs. Bangs era crítico de música da Rolling Stone e, entre 1969 e 1973, escreveu pelo menos 150 resenhas de discos e shows para a revista. O estilo de Bangs transferia para a crítica musical e entrevistas características do jornalismo gonzo, como o uso da primeira pessoa, a participação do jornalista na cena que descreve e a utilização de digressões e analogias recheadas de referências ao uso de alucinógenos. A escrita era clara e incisiva como a de Thompson, mas Lester Bangs enfrentaria problemas na redação justamente por não se adaptar ao padrão de crítica comum. Não havia espaço para condescendência ou amabilidades em uma crítica de Lester Bangs. Seu senso de humor iconoclasta era uma arma contra a pretensão e o novo sistema do mundo do rock, uma nova postura que crescia entre grupos e astros, a postura do popstar, que ele desprezava, e cujo surgimento a RS acabou ajudando a forjar.
(...) Os roqueiros “top” têm uma aura mística ao redor deles. O “superstar”, e isso é um estado basicamente doente das coisas, de fato, é o vírus que está fodendo com o rock, (...) que infesta “nossa” cultura dos popstars aos políticos (imagina alguém jogando uma tora na cara de Eldridge Cleaver! Joan Baez!) (...) (precisamos) nos livrar de todas as formas de estilos de vida não-criativos nos quais gente a quem falta metade do talento ou da personalidade ou do carisma que eu ou você temos é elevada à posição de deus. (...) O que precisamos é de mais rockstars dispostos a fazer papel de bobos (...) e se possível fazer com que platéia fique constrangida por eles, desde que não sobre nenhum fiapo sequer da dignidade ou aura mítica em torno deles. Porque toda a pomposa construção criada pela supremamente ridícula indústria do rock, inventada para agarrar uns trocados passando a perna na garotada e encorajando suas fantasias de uma (...) “cultura jovem”, colapsaria e com isso também colapsariam as carreiras de zé-ninguéns sem talento que brotaram dela. (...) É preciso coragem pra ser idiota, e dizer, “Olha, isso aqui é tudo armação, esse show e todas as suas armadilhas de holofotes e drogas e jaqueta (...), e o fato de que você está aí e eu estou aqui em cima não significa nada.”
Em “Uma lenda de nossos tempos” , de 1971, Lester Bangs, que escrevia então para a RS e para outra revista especializada, a Creem (onde o texto foi publicado originalmente), criou um diálogo que sugere, de início, querer envolver o leitor nas reminiscências de um velho sobre a banda de rock The Yardbirds mas revela outra intenção: Na verdade, desviava os holofotes para uma banda esquecida e injustiçada pela crítica no rastro do sucesso dos Yardbirds. Bangs sabia que a maior parte dos leitores do jornalismo de rock naquela época não tinha vivido os anos 60, quando os Yardbirds e o Count Five (a banda que considera injustiçada pela história do rock) estavam no auge. Ele se aproveita disso para desenvolver uma teia de ficção que prende os neófitos, arrastando-os à experiência de quem viu ambas as bandas no passado, o ápice de uma, em 1965, e a carreira obscura da outra. Na situação que inventa, posiciona-se como um sábio idoso diante de um grupo de crianças malcriadas. Para garantir a atenção do leitor, abre o texto com um chamado com toques de auto-depreciação:
- Venham aqui, meus netinhos, deixem este velho colocar vocês no colinho. Enquanto vocês ainda me reconhecem, seus maníacos! (...) Deixe-me colocar este cérebro para funcionar e... que lenda de outrora vocês gostariam de ouvir hoje?
- Que p*** é essa de Yardbirds?
Nesta cena, Bangs se mostra como o portador de uma verdade sem registro histórico a não ser por sua própria memória, mas um sábio que pode rir de si mesmo e permite que sua platéia também ria quando faz com que os personagens de sua crítica/crônica zombem de sua velhice.
Ele começa falando sobre o grupo Yardbirds e, de repente, sua narrativa é minada por várias digressões que constituem severas críticas aos imitadores do som da banda que surgiram no seu rastro, como o Led Zeppelin, que detestava. Sem abandonar a ironia, cria um final sangrento puramente fictício para os membros do Led Zeppelin, no palco, que expressa todo o seu desprezo por aqueles que ganharam dinheiro (“Uma década depois ainda havia gente enriquecendo, fazendo imitações (...) porque os originais não duraram muito tempo”) usando uma fórmula adaptada da música e da performance dos Yardbirds.
Apesar de dirigir sua história no texto a crianças que zombam de tudo que é antigo, músicos e ele próprio, não significa que Bangs estivesse subestimando o gosto ou a inteligência de seu leitor. Pelo contrário, deixava claro que sabia até onde eram exigentes e o quanto prezavam uma história bem contada. As crianças demonstram-se impacientes (“Ah, corta essa babação senil e manda logo a p*** da arqueologia, ou a gente pula fora do seu joelhinho e vai procurar alguma ação. Seu velho!”) e desconfiadas, com um senso crítico agudo e não aceitam perder tempo com besteira; mas ouvem a história até o fim, assim como o leitor não abandona o texto.
Toda a digressão acerca dos imitadores só é compreendida (embora nunca se torne arrastada ou chata – o leitor não se importa de estar lendo uma digressão, uma vez que o texto é tem doses bastants de ironia para entretê-lo ao longo do desvio de assunto) depois, quando Bangs aborda seu verdadeiro tema: Count Five, a banda obscura que havia sido considerada – inclusive pelo próprio Bangs – mais uma cópia de Yardbirds em seu primeiro disco; Bangs explica como desfez essa impressão da banda e passou a gostar não só de seu primeiro disco como comprou todos os outros do Count Five.
Para finalizar, dá a voz às criança sentadas à sua volta novamente:
- TÁ CERTO, MAS QUANDO É QUE VOCÊ VAI CONTAR PRA GENTE DOS YARDBIRDS?!
Uh, hmmmm, sim... bem, essa história vai ter que ficar prum outro dia. Além do mais, quando você pensa bem nisso, Count Five era provavelmente mais importante que os Yardbirds, a longo prazo. É só que algumas pessoas são reconhecidas em sua própria época, outras não.
A verdade que expressa vai além da preferência do crítico sobre uma banda em detrimento de outra. É comum artistas, escritores, pintores e músicos não terem sua obra reconhecida à época em que a produzem: o mesmo aconteceu a Nietzsche, por exemplo, que, segundo o próprio filósofo, teria nascido póstumo. É a esta idéia que Bangs remete na conclusão, sem esquecer de relatar, no meio do caminho, como o funcionamento da indústria fonográfica contribuiu para que o mesmo acontecesse ao Count Five: Ele conta que a gravadora da banda não compreendeu o trabalho e não acreditou nela após seu primeiro disco, impondo-lhe uma divulgação ineficaz, sem investimentos e com má distribuição nas lojas, o que levou o grupo ao ostracismo e a uma posição menos que secundária em relação a outros astros da época. O trabalho de Bangs, aqui, é de recuperação não de uma insígnia ou título para o Count Five mas de resgatar e atrair a atenção do público para música tão fundamental para o nicho cultural que cobre em suas resenhas e artigos quanto a fusão de blues, jazz e rock dos Yardbirds, os únicos a levarem o crédito.
Em 1973, a situação ficou insustentável entre Lester Bangs e o editor Jann Wenner. Naquele ano, Wenner demitiu-o da RS por “desrespeito aos músicos” e Bangs passou a escrever quase que exclusivamente para a revista Creem, da qual se tornou editor. Na Creem, tinha liberdade total para escrever resenhas com títulos como “James Taylor Marcado Para Morrer”. Junto ao também editor e amigo Dave Marsh, transformou a revista em uma espécie de central subversiva contra o fluxo de grupos e artistas puramente comerciais com que a indústria fonográfica vinha alimentando o mercado cada vez mais. Segundo o jornalista Greil Marcus Bangs explica na introdução de “Psychotic Reactions and Carburetor Dung”, foi entre 1970 e 1976, enquanto trabalhava na Creem, que Bangs “descobriu, inventou, alimentou e promoveu uma estética de alegre desdém, um amor por tudo que fosse lixo aparente e desprezo por toda a pretensão” que se tornava uma constante na música de que gostava. Seus esforços encontrariam eco entre 1976 e 1977 em um movimento que incorporaria o não só a estética que pregava como também o nome que dera a ela: punk. O surgimento dos Ramones e outras bandas criando a trilha sonora daquele ideário, o punk rock, na casa noturna CBGB, e dos Sex Pistols na Inglaterra, era uma resposta a tudo aquilo que Bangs desprezava na cena musical da época.
Em fevereiro de 1972, a revista New York publicou um artigo intitulado “O Nascimento do New Journalism – Reportagem de Testemunha Ocular por Tom Wolfe”, no qual o jornalista e escritor norte-americano declarava, em 13 páginas maciças de texto e fotos, a morte do romance. Seu argumento era a chegada da nova safra de livros de não-ficção, que passavam a tomar emprestado ferramentas da narrativa literária para elaborar um estilo de reportagem inteiramente novo. O gênero que seria primeiro cunhado por Wolfe como New Journalism (Novo Jornalismo), passando a chamar-se, nos Estados Unidos, Jornalismo Literário, começara a firmar-se entre as décadas de 30 e 60. A tradição que ajudou a formá-lo, no entanto, data de muito antes: há registros de que em 1700, os escritos do norte-americano Daniel Defoe carregassem características do estilo. Uma tradição que pode ser observada também em Mark Twain, Stephen Crane, John dos Passos, Ernest Hemingway, George Orwell e Mary McCarthy.
Os primeiros experimentos literários de Wolfe em não-ficção foram escritos para a New York e para o jornal Herald Tribune, onde passou a trabalhar como repórter em 1962, e transformados, em 1965, no best-seller “The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby”, sobre as mudanças de comportamento na cultura americana que observara na primeira metade da década de 60.
Antes de Wolfe, na década de 30 ainda, o jornalista Joseph Mitchell já começara a dar pistas do trabalho que apresentaria anos mais tarde na revista The New Yorker e que já podia ser classificado como Jornalismo Literário.
When writers, readers, English teachers, librarians, bookstore people, editors, and reviewers discuss extended digressive narrative nonfiction these days, they're fairly likely to call it literary journalism. The previous term in circulation was Tom Wolfe's contentious "New Journalism." Coined in the rebellious mid-sixties, it was often uttered with a quizzical tone and has fallen out of use because the genre wasn't really alternative to some old journalism, and wasn't really new.
Literary journalism is a duller term. Its virtue may be its innocuousness. As a practitioner, I find the "literary" part self-congratulating and the "journalism" part masking the form's inventiveness. But "literary journalism" is roughly accurate. The paired words cancel each other's vices and describe the sort of nonfiction in which arts of style and narrative construction long associated with fiction help pierce to the quick of what's happening - the essence of journalism.
1.1. Características do texto de Jornalismo Literário
O Jornalismo Literário pode ser trabalhado sob diferentes perspectivas, com características em comum: uma das mais marcantes é que o autor faz parte da história ativamente, como observador participante. Outra marca importante é o uso de representações simbólicas e de estruturas complexas de texto. O que denominam “voz do autor” tem papel crucial, ao lado de outros procedimentos recorrentes.
O objetivo da construção típica do texto de Jornalismo Literário é fazer com que o estilo e a narrativa, associadas a elementos de ficção, sirvam para atingir a essência do jornalismo propriamente dito, e responder da melhor maneira à sua questão fundamental: o que está acontecendo?
No artigo de abertura escrito por Mark Kramer para “Literary Journalism – A New Collection Of The Best American Non-Fiction”, co-editado por Kramer e Norman Sims, são listadas oito regras para jornalismo literário, com o senso de humor que é também uma das possibilidades marcantes do estilo, sob o título “Breakable Rules For Literary Journalists” (algo como “Regras Nada Rígidas Para Jornalistas Literários”).
I - Imergir-se no universo do assunto da reportagem.
Jornalistas Literários acompanham durante bastante tempo suas fontes; podem passar de meses a anos envolvidos na rotina das pessoas relacionadas ao seu assunto escolhido e, enquanto cumprem esta etapa do seu trabalho, devem estar sempre atentos a quaisquer alterações nesta rotina e personagens observadas, imaginando constantemente como deverá retratá-los. A imersão é necessária para garantir a compreensão do tema de maneira que mostre níveis diferentes das pessoas em suas rotinas - nuanças como fragilidade, maldade, gentileza, vaidade, generosidade, egoísmo, humildade - de acordo com a realidade, sem explicações burocráticas ou oficiais, do tipo “preto no branco”, para as situações e personalidades apresentadas mas usando decepções, hipocrisias, situações engraçadas para ajudar na compreensão do fato, da experiência pelo leitor.
É preciso tempo para atingir este nível com o tema e as fontes observados, para chegar ao ponto em que as verdades aparecem. Este tempo é dividido entre um estudo prévio sobre o tema, realizado através de livros, revistas, jornais, etc.; “trabalho de campo” propriamente dito: acompanhamento tomando notas sobre o ambiente, frases ouvidas entre as fontes que possam oferecer esclarecimento sobre o tema e mostrar a personalidade das pessoas envolvidas; tempo para repensar todas as primeiras impressões e entender o que está se passando enquanto faz a observação.
II – Relação do jornalista literário com a fonte-assunto e com o leitor
Os primeiros parágrafos podem determinar se o leitor deve ou não confiar nos relatos da experiência do jornalista literário: este deve dar demonstrações de franqueza, escrevendo sem rodeios e apresentando, de forma implícita, a maneira como vai abordar seu tema.
“Em qualquer tipo de jornalismo, você tem que construir um laço de confiança, tem que deixar as pessoas se sentirem à vontade quando você tá em volta e esquecer de você como repórter e aí falar as coisas”, explica Joe Nocera. Nocera é autor de “The Ga-Ga Years”, em 1998, não só uma história sobre o mercado de ações mas sobre como circula o dinheiro hoje.
Cabe ao leitor julgar se o autor cumpre o que “promete” nos primeiros parágrafos, o que leva a duas questão de natureza ética:
a) Relação do autor com o leitor: Uma prática muito utilizada em textos de New Journalism e Jornalismo Literário é a inserção de personagens e diálogos criados pelo jornalista. Ainda que isso seja considerado antiético, a intenção não é o dolo: trata-se de um expediente para reavivar, tornar mais claro um evento, um fato testemunhado e/ou vivido pelo autor, que tenha relação crucial com a história que conta. Mark Kramer não condena a prática e cita um dos pioneiros do gênero, Joseph Mitchell, como jornalista que se utilizou dela para tornar mais vivo algum evento em seus livros. Mais grave do que “realçar” fatos através dessa prática pode ser a utilização de detalhes inconsistentes, o que ameaça a descrição de uma cena e dá sinais de que as teorias sobre o evento precisam de mais investigação, se não explicam o que aconteceu.
b) Relação do autor com sua fonte-assunto: o jornalismo literário exige uma aproximação intensa do autor com suas fontes (chamadas aqui “fonte-assunto” por constituírem, mais que uma fonte para depoimentos sobre o tema investigado, o assunto da matéria) para que escreva com autenticidade sobre a “Felt Life” a que Henry James referia-se, ou a vida não-idealizada. São muitas as dificuldades que podem ser encontradas no caminho dessa autenticidade: a fonte e/ou assunto investigado têm de consentir em ter por perto por um longo período a presença do autor em suas vidas; esta presença vira uma companhia e é comum que se torne uma relação de amizade, que é mútua. Se amigos, família, maridos, esposas costumam obter verdades que Kramer denomina “socialmente estratégicas” sobre a fonte-assunto, o trabalho do jornalista literário é chegar à verdade que está além desses fatos socialmente estratégicos, ou seja, que são apenas convenientes e aceitáveis entre os que cercam sua fonte-assunto. O autor, sem má fé, deve tentar atingir o acesso irrestrito a um nível da fonte-assunto que geralmente esta oblitera do conhecimento de suas relações – as intenções do autor devem ser sempre expostas à fonte-assunto com a maior clareza e veracidade, sem falsidade alguma.
Mark Kramer relata sua própria experiência em aproximar-se da fonte-assunto para tornar mais claro o procedimento: “Minha norma é mostrar (previamente) artigos antigos, tornar claro o nível de exposição pública envolvido, estipular que a fonte-assunto não poderá editar meus manuscritos ou checar citações.” E lembra: “Qualquer gênero, seja ele jornalismo diário ou literário, poesia ou ficção, depende em última instância da integridade do autor”.
III – Jornalistas literários escrevem quase sempre sobre eventos rotineiros
A necessidade de obter acesso total e conveniente para sua investigação obriga o jornalista literário a escolher assuntos rotineiros e lugares que podem ser freqüentados, o que não significa assuntos e lugares que despertem pouco interesse. Rotina não é, necessariamente, algo desinteressante. Uma vida comum, investigada a fundo e contada sob uma perspectiva interessante torna-se interessante.
O objetivo do autor em tornar-se presente na rotina de suas principais fonte não deve ser o de se socializar ou tornar-se um insider mas aprender como pensa o insider, em que pensa, suas vivências e perspectivas e o que é rotina para ele. O insider que ler um trabalho jornalístico sobre seu meio deve achá-lo relevante e preciso, mas não da perspectiva de um insider.
Há casos em que a rotina de terceiros não precisa ser observada para que a história seja relatada sob a perspectiva de um jornalista literário: Francis Steegmuller, por exemplo, publicou em 1986 na revista New Yorker “The Incident At Naples”, em que relata na primeira pessoa a própria experiência de ter sido roubado e ferido durante uma viagem, evento inicialmente rotineiro que se torna situação-limite. “Talvez seja para atingir esses limites que os escritores lançam-se em viagens (...) e vivem para contar”, comenta Kramer. Participar: “Não viajo para me divertir, só, é mais para ver coisas que me interessam e apresentar meu testemunho delas”, escreveu Ted Conover (autor de “Rolling Nowhere”, 1984, sobre seu convívio seguindo, durante um ano, grupos de pessoas que viviam nas ruas). Participar também é um jeito de encontrar a narrativa, a voz íntima no texto, de ficar próximo do leitor e do assunto ao mesmo tempo: ou seja, o autor é insider e ao mesmo tempo está perto do leitor; e este sabe tudo o que o autor passou pra chegar até ali. Se o autor conta a sua trajetória junto da matéria, familiariza o leitor com a verdade sobre a sua matéria, ainda que o conteúdo apresente detalhes que não apareceriam normalmente em uma matéria de jornal comum sobre o assunto. Esses detalhes, pequenas digressões, servem para transportar o leitor para um ponto onde a lógica, sozinha, não leva.
IV - A voz própria do jornalista literário:
A chamada voz própria do jornalista literário é a linguagem adotada por ele para abordar seu assunto na matéria/livro. Ela deve ser informal, franca, irônica, humana. A impessoalidade que qualifica o escritor acadêmico, que apresenta seu material de pesquisa sem estabelecer uma relação com o leitor; ou a objetividade, a exposição não opinativa de fatos do jornalista ortodoxo são características opostas ao jornalismo literário. O narrador neste estilo tem personalidade: joga com ironia, dúvidas, e até humor auto-depreciativo. Enquanto o repórter comum aprende a guardar para si sua opinião sobre o que relata , assim como suas reações diante dos fatos, Mark Kramer explica que a voz íntima a que se refere é a voz da pessoa nua. Sem o abrigo burocrático do jornalismo convencional, surge a voz de alguém que passou por uma experiência e relata cada viez da mesma, desde os momentos do trabalho em que houve dúvidas, medo, engano, tristeza, excitação, fúria, mau humor, até a reflexão. Essa voz é a força do jornalismo literário. Kramer costuma sugerir aos seus alunos da Universidade de Boston um exercício para que encontrem sua voz íntima: escrever como se estivessem contando uma história para amigos próximos cujo senso de humor e inteligência respeitam. O que pode surgir é uma voz bem-humorada, consciente, não-autoritária. Lê-la é quase sempre uma experiência envolvente.
A escrita acadêmica e noticiosa, impessoal e objetiva, visa a mostrar ao leitor os fatos. Suas restrições quanto à opinião do autor acabam por esconder grandes fatias da realidade do fato. A linguagem formal protege tabus, aparências e “verdades oficiais”. A voz própria seria uma maneira de derrubar essa proteção. Para Kramer, a voz íntima mostra as pessoas e as instituições como elas são.
Quanto à ironia, ela serve para mostrar um outro lado da ação diferente daquele considerado ou experimentado pelos agentes. Não precisa surgir do sarcasmo ou de comentários maldosos.
V – Estilo: claro e econômico
Se a linguagem da voz íntima é informal e irônica, seu estilo deve ser elegante e o mais simples possível, sem rebuscamentos. Limpa, lúcida, pessoal, essa linguagem aproxima o leitor da experiência relatada. Evocativa, bem humorada, dando preferência a verbos de ação e não aos mais abstratos, adjetivos, deve levar o leitor não apenas a imaginar um fato mas “senti-lo”; sentimentos também levam o leitor onde a lógica não pode levar. Por isso é tão importante que o jornalista literário relate o que sentiu e pensou em momentos cruciais de sua observação do assunto.
VI –Digressão
Falar diretamente ao leitor é uma característica dos melhores autores deste gênero; desta forma, o autor torna-se um anfitrião do leitor na experiência que relata e para a qual o atrai. Para que o relato seja divertido e cativante, uma espécie de “plataforma retrospectiva” é essencial: dá mobilidade ao autor, que pode relatar a ação com todos os detalhes do evento, refletindo então sobre ela sob uma perspectiva temporal e local situada fora da ação.
O autor pode ser como um “anfitrião" que conhece o assunto de dentro e entretém com um texto agradável, com o uso da ironia próprio das digressões, guiando o leitor pela história, saindo da ação para a informação digressiva e voltando à ação.
Esta é a técnica comum a textos literários que se tornou uma das mais marcantes características do New Journalism: a digressão. Em literatura, é empregada em momentos onde a ação interessante está para acontecer. Sua função é fazer com que o leitor retorne ao assunto principal após a leitura do trecho digressivo com uma melhor perspectiva dos eventos.
VII – Estruturação
O jornalismo literário é feito sobre narrativas e construção de cenas. O jornalista que se utiliza de técnicas literárias para escrever suas matérias pode estruturar uma história e suas digressões da mesma maneira que um escritor de ficção. Mas a digressão deve ser informativa, para que o leitor volte ao ponto da história de onde foi transportado antes com a visão realmente ampliada pela digressão. A ordem das cenas, os pontos de digressão, a intensidade com a qual se deve desenvolver cada elemento envolvido na história, tudo isso deve ser estruturado de maneira a considerar os efeitos que causarão no leitor e como pode trazê-lo mais próximo à experiência do autor.
VIII – O significado construído entre autor e leitor
Se a estruturação e a linguagem são planejadas e executadas com habilidade pelo autor, o leitor sente que vai chegar a algum ponto com a leitura, que o trabalho de ler vale a pena. O autor deve ser capaz de criar não apenas seqüências de parágrafos bem escritos e organizados com clareza, mas seqüências de sensações e experiências emocionais e intelectuais, capazes de envolver o leitor da maneira que um bom romance ou filme faz.
1.3 “Sinatra está gripado” – “A Voz” investigada por Gay Talese
Embora recuse o rótulo, Gay Talese é apontado como um dos precursores do Novo Jornalismo. Tom Wolfe foi quem primeiro o identificou assim, nas páginas da revista Esquire, cuja equipe tinha em Talese uma de suas estrelas na década de 60. Foi na Esquire que Talese publicou “Sinatra Has a Cold” (“Sinatra está gripado”), um longo artigo baseado em exaustiva pesquisa e observação paciente, resultando em um apurada descrição da personalidade e do mundo do cantor Frank Sinatra.
Gay Talese não se sente confortável sob o rótulo “Novo Jornalismo” porque, segundo explica em seu website , seus “romances com nomes reais” não são escritos como uma cruzada reformista. “São a minha resposta altamente pessoal ao mundo, enquanto um outsider ítalo-americano,” afirma.
Para escrever “Sinatra has a cold”, Talese aproveitou seu profundo interesse por sua própria veia ítalo-americana. Nascido em 7 de Fevereiro de 1932 em uma família de origem italiana, o autor encontrou um ponto em comum entre sua própria biografia e a de cantor. O meticuloso trabalho de aproximação do tema Sinatra figura em sua bibliografia (que contém ainda livros sobre a Máfia italiana, tendo sido ele o primeiro escritor a investigar o submundo dos mafiosos de dentro com “Honor Thy Father”) beneficiou-se desse ponto em comum, garantindo ao autor explicar a dimensão que definiu como “siciliana” no cantor, além de obter simpatia e acesso por causa de suas origens. O trabalho é uma de suas “respostas” de ítalo-americano ao mundo, além de constituir um exemplo irretocável de como o Jornalismo Literário pode ser usado em jornalismo cultural. O método empregado por Talese nesta reportagem tem seu alicerce em um tripé fundamental para o jornalista literário, englobando algumas das “regras” sugeridas por Mark Kramer, e pode ser assim exemplificado, de acordo com a leitura de “Sinatra Has a Cold”:
I – Contextualizando Sinatra
Talese abre o texto explicando que o cantor, que esteve calado por horas, está prestes a dizer algo.
“Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon em uma das mãos e um cigarro na outra, está parado em um canto escuro do bar entre duas loiras atraentes embora desbotadas que se sentaram esperando que ele dissesse alguma coisa. Mas ele não disse nada; ele se manteve em silêncio durante a maior parte da noite, exceto agora neste clube privado em Beverly Hills; ele parecia ainda mais distante, olhando através da fumaça na semi-escuridão para um salão atrás do bar onde dúzias de jovens casais acotovelam-se à volta de pequenas mesinhas ou se sacodem no centro da pista ao alarido metálico da música folk-rock que sai do estéreo. As duas loiras sabiam, assim como os quatro amigos de Sinatra que estavam por perto, que era uma má idéia forçar uma conversa quando ele estava neste clima de silêncio taciturno, um ânimo dificilmente incomum durante a primeira semana de Novembro, um mês antes de seu 50º aniversário.”
A reportagem, aberta com Sinatra em silêncio em uma boate, ganha uma digressão em que Talese mantém em suspense a seqüência desta cena específica. Ele não relata imediatamente as ações dos personagens a quem fez referência no parágrafo de abertura. Ao invés de entregar respostas às questões “o quê”, “como”, “quando” sobre aquele lugar e aquelas pessoas descritos no primeiro parágrafo, o que poderia ser logo fornecido em uma matéria mais simples sobre o cantor, Talese oferece um panorama geral do que Sinatra estava vivendo em sua carreira e sua vida pessoal, remontando a eventos ocorridos dez anos antes e a outros nem tão distantes, como a superexposição de seu relacionamento com a atriz Mia Farrow (então com 20 anos de idade) na mídia; a invasão de sua privacidade por uma equipe da rede de TV CBS, por conta da gravação de um documentário sobre sua vida em que chegava inclusive a especular sobre suas ligações com membros da máfia italiana; a preocupação do cantor em relação ao especial que gravaria para a NBC: resfriado, Sinatra era, nas palavras de Talese, “Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível”, uma vez que um simples resfriado podia lhe roubar “sua jóia”, sua voz, “cortando o âmago de sua confiança, e afetando não só sua própria consciência mas também causando um tipo de corrimento nasal psicossomático entre dúzias de pessoas que trabalham para ele, bebem com ele, o amam, dependem dele para seu próprio bem-estar e estabilidade.” Um resfriado em Sinatra teria o poder de “enviar vibrações por toda a indústria do entretenimento e para além dela assim como o Presidente dos Estados Unidos, adoecido de repente, pode sacudir a economia nacional”. Este é o gancho para que Talese nos guie até outro bar, em Nova Iorque, o Jilly´s, onde o cantor possuía uma mesa cativa, a qual não podia ser ocupada por mais ninguém, mesmo quando Sinatra não estava na cidade. Aqui será delineado um dos lados do perfil de Sinatra que Talese define como “Il Padrone”, o chefe, “majestoso e humilde” ao mesmo tempo; um tipo siciliano para quem meias verdades e meias decisões não são suficientes. Ele quer tudo “all the way”, até o fim. Exige 100% de fidelidade de seus amigos, a quem oferece em troca proteção, amizade, presentes, TUDO de Sinatra. Todos que conhecem Sinatra e estão em Nova Iorque vão até sua mesa no Jilly´s para “prestar seu respeito ao padrinho”. O outro lado da personalidade de Sinatra surge quando está com gente do showbusiness como Lisa Minelli e Sammy Davis Jr., fazendo piadas e bebendo: é o “Swinger”, um boa-vida engraçado e charmoso. Ambos os tipos são anacrônicos.
Só após esta digressão o leitor fica sabendo o que realmente acontece naquele cenário instaurado por Talese no primeiro parágrafo. Sinatra reaparece no bar de Los Angeles, agora contextualizado pelo recuo no tempo oferecido por Talese. O comportamento de Sinatra e seus amigos na boate agora faz sentido no contexto “O Chefe/O Boa Vida” apresentado pelo autor. A cena é retomada de onde parou:
Agora Sinatra disse algumas palavras às loiras. Então, virou-se e começou a caminhar em direção à sala de sinuca. Um dos amigos de Sinatra aproximou-se para fazer companhia às garotas. Brad Dexter, que tinha ficado em um canto falando com outras pessoas, seguiu atrás de Sinatra.
Segundo Mark Kramer afirma em suas “Regras Nada Rígidas Para Jornalistas Literários”, o autor precisa se basear em uma estrutura de “contador-de-estória”, construindo digressões que sugiram um destino que valha a pena ser atingido. Digressões que não abandonam seu tema mas o ampliam prendem o interesse do leitor. E é precisamente para ampliar a dimensão de Sinatra aos olhos do leitor que Talese digressiona.
II – Endossando a contextualização
A observação do comportamento das pessoas ao redor do cantor e da fala de seus amigos oferece detalhes consistentes e é o que endossa as definições do autor sobre a personalidade de Frank Sinatra. Aqui, Talese demonstra credibilidade, ganhando a confiança do leitor apresentando diálogos e cenas que só uma observação muito próxima poderia permitir.
Brad Dexter que, anos antes, havia salvado a vida de Sinatra evitando que o cantor se afogasse, no Havaí, afirma: “Eu mataria por ele”. Em seguida, Talese nos conta que Dexter foi feito vice-presidente da produtora de Sinatra e ganhou um escritório luxuoso próxima à sala de Sinatra. A fala e as credenciais de Dexter justificam no texto o lado “Il Padrone”, passional e siciliano, de Sinatra.
Um retrato do lado “Boa-vida” e do círculo de amizades do showbusiness de Sinatra vem em outra cena de bar, desta vez de volta no clube The Sahara, onde o comediante Don Rickles começa um jogo de piadas com o cantor e seu séquito, entre eles Dean Martin, o dono do Jilly´s, Jilly Rizzo, e Leo Durocher, um amigo próximo de Sinatra:
Quando o grupo de Sinatra entrou, Don Rickles não podia ter ficado mais satisfeito mais. Apontando para Jilly, gritou: “Como você se sente sendo o trator de Sinatra?... ééé, Jilly continua andando na frente de Frank para limpar o caminho.” (...) Ele então concentra-se em, Sinatra, sem esquecer de mencionar Mia Farrow, nem a peruca que Frank usava, ou que ele estava acabado como cantor, e, quando Sinatra riu, todos riram, e Rickles apontou para Bishop: “Joey Bishop continua verificando com Frank o que é engraçado”. Então, depois que Rickles contou algumas piadas de judeu, Dean Martin levantou-se e gritou: “Ei, você tá sempre falando de judeus, nunca sobre italianos,” e Rickles cortou com essa: “Para que precisamos de italianos – tudo que eles fazem é manter as moscas longe de nosso peixe.” Sinatra riu, todos riram, e Rickles prosseguiu dessa maneira por quase uma hora, até Sinatra, levantando-se, dizer:
“Tá legal, vamos lá lá, acabe com isso. Eu tenho que ir.”
“Cale a boca e sente aí!” Rickles mandou, “Eu tive que agüentar você cantando...”
“Com quem você pensa que está falando?” Sinatra gritou de volta.
"Dick Haymes," Rickles respondeu, e Sinatra riu novamente, e então Dean Martin, derramando uma garrafa de uísque sobre sua cabeça, molhando todo o seu smoking, socou a mesa. “Quem acreditaria que aquele sujeito cambaleante viraria uma estrela?”, Rickles disse.
Embora Talese não se coloque, neste momento, em foco na cena, fica subentendido, pela maneira como ela é desenvolvida no texto, que ele está presente quando a ação acontece. Caso tivesse apenas ouvido a história de alguns dos presentes, seu estilo denunciaria tratar-se de um relato de segunda mão. Sua presença discreta no ambiente só pode ser percebida pelo detalhe e dinamismo que confere aos diálogos da cena. “Jornalistas literários tomam notas elaboradas para reter citações precisas,” afirma o autor de “Breakable Rules For Literary Journalists”. É a partir dessas falas citadas com precisão que Talese consegue reconstruir cenas inteiras para o leitor.
III – Ouvindo para revelar
Em seu livro “Origens de Um Escritor de Não-ficção”, Gay Talese explica que aprendeu com a mãe, dona de uma loja de roupas, a importância de ouvir com paciência, sempre demonstrando interesse. Catherine DePaolo Talese costumava ouvir suas clientes com grande atenção por detrás do balcão da “Talese Townshop”. Uma lição que aprendeu assistindo à evolução dessas confissões feitas à sua mãe é que nunca deveria interromper, nem mesmo quando a pessoa demonstrasse dificuldade ou hesitação ao se expressar. Segundo ele, é justo no momento em que demonstra maior imprecisão em seu discurso que muita coisa sobre é revelada sobre quem fala. Suas pausas, evasões, mudanças repentinas de assunto – tudo isso seriam indicadores do que as deixa preocupadas, embaraçadas, irritadas ou do que guardam como muito pessoal ou não deve ser revelado para ninguém.
Também cheguei a ouvir gente discutindo com minha mãe assuntos os quais, antes, já havia percebido que costumavam evitar – um tipo de reação que eu acho que tinha menos a ver com a natureza curiosa dela ou suas perguntas colocadas sempre com muita delicadeza, do que com a aceitação gradual das pessoas em relação a ela como alguém confiável.
Durante o período que um jornalista literário acompanha seu assunto, até mesmo uma relação que começa estritamente profissional tende a tornar-se mais como uma parceria ou até amizade. O tempo e a atenção dedicada pelo escritor ao tema e pessoas ligadas a ele é grande e isso tende a derrubar barreiras de intimidade entre eles. O importante, segundo Mark Kramer , é que a posição do escritor seja sempre clara e verdadeira em relação à sua fonte, a quem devem ser mostradas reportagens anteriores do escritor realizadas nesse molde para que elas compreendam do que se trata seu trabalho. Para algumas pessoas, o escritor torna-se uma boa companhia, um confidente. A ele, elas contarão tudo, coisas que, antes da convivência, talvez sequer imaginassem que revelariam. O escritor deve, portanto, deixar claro que continua sustendo sua intenção inicial de documentar e escrever sobre o que lhe é contado.
As regras sugeridas por Mark Kramer e empregadas por Gay Talese e outros cujo trabalho é reconhecido como Jornalismo Literário, funcionam como um caminho para que se produza um trabalho sobre fatos reais que seja leitura tão instigante quanto a de um bom romance. Não são regras fixas, são “quebráveis”, como diz o título do texto de Kramer; e alguns jornalistas, de fato, modificaram muito dessa cartilha para que pudessem construir sua voz própria e moldar o jornalismo literário à sua maneira. Um desses jornalistas é o norte-americano Hunter S. Thomspon.
2. Hunter S. Thompson e o Jornalismo Gonzo
Hunter Stockton Thompson, assim como o gim, o bourbom, o tabaco e o Kentucky Derby, é um típico produto de Louisville. A cidadezinha do Kentucky, no sul dos Estados Unidos, é conhecida por sua produção de bebidas e cigarros, além de abrigar o tradicional, e por vezes violento, Kentucky Derby, um evento onde todos os anos, desde ____, a platéia costuma consumir uma inacreditável quantidade de bebida e mantém a polícia ocupada com brigas, desmaios e outras ocorrências relacionadas ao consumo excessivo de álcool.
Thompson nasceu em meio ao período da Depressão, em 18 de Julho de 1939 (as biografias divergem quanto ao ano, registrado algumas vezes 1937), filho de Virginia Ray e Jack R. Thompson, um agente de seguros. Seu primeiro trabalho como jornalista foi publicado no Southern Star, um jornal mimeografado que custava três centavos de dólar, consistindo em duas páginas de notícias locais, opinião e anúncios, e editado por Walter Kaegi, Jr., de dez anos de idade. Thompson, na época, era uma criança hiperativa de oito anos de idade. Data deste mesmo ano seu primeiro atrito com a lei; ele e um grupo de garotos vandalizaram um banheiro masculino do Parque Cherokee, atirando latas, espalhando lixo e pichando as paredes. O grupo foi pego pela polícia e levado à delegacia, onde uma ocorrência chegou a ser preenchida.
Os pais de Thompson eram ambos alcoólatras; Jack, que sofria de um distúrbio neurológico conhecido como myasthenia, costumava ter surtos violentos em casa e bater nos filhos. Quando Jack morreu, aos 57 anos, de um ataque cardíaco, Thompson, aos 15, começou a beber também. Se, até esse momento, era um rapaz bastante ligado aos esportes (tendo inclusive começado um clube de baseball com os amigos), agora bebia e trabalhava no balcão de doces de uma lojinha; não hesitava em comer os doces que deveria vender e logo que começou a ganhar peso, teve que deixar o time Castlewood. Sem a disciplina imposta pelo pai em casa e exigida pelo esporte, começou a procurar outras atividades onde pudesse despejar sua energia. Para continuar na esfera do esporte, que permaneceria como um interesse prioritário (junto a outro que se somaria mais tarde, a política) por toda a sua vida, escrevia sobre o assunto no Southern Star, que àquela altura já crescera em público e número de páginas. Mas o trabalho no periódico não era o suficiente para mantê-lo na linha, nem mesmo na escola, onde conseguia convencer os amigos a escapar para beber. Nesse período, ele e outros alunos com problemas de conduta formavam o grupo que denominaram “The Wreckers” (algo como “Os Quebradores”) , cuja função era, basicamente, praticar atos de vandalismo pela cidade.
Aos 17 anos, Thompson foi condenado a sessenta dias de prisão por um assalto. Passou seu aniversário de 18 anos na cadeia. Por sugestão do juiz que o condenara, aceitou alistar-se na força aérea e, na base de Eglin, sua fama de arruaceiro delineou-se rapidamente: Thompson era considerado um “problema moral”, embora todos admitissem que suas matérias para a Command Courier, a revista da base, eram interessantes. Quando obteve dispensa de Eglin, com honras, - apesar das queixas em que configurava desobediência aos oficiais e normas da base -, Thompson aceitou um convite da El Sportivo para residir em Porto Rico, escrevendo sobre boliche para a revista. Em pouco tempo, decepcionado com a monotonia do trabalho na El Sportivo, retornou aos Estados Unidos para, em 1962, tornar a viajar, desta vez à América do Sul, onde atuou como correspondente da revista National Observer. Thompson enviava para a National Observer reportagens que englobavam os costumes locais e suas próprias observações sobre os lugares que visitava. De volta aos EUA, meses depois, cobriu suas primeiras convenções.
Com tudo isso, Thompson não tardou a enxergar no jornalismo uma oportunidade de conhecer o mundo e garantir seu sustento enquanto, paralelamente, poderia a investir em uma carreira literária. O interesse pela literatura e sua imersão no mundo do jornalismo, aliados à natureza irrequieta e ao temperamento explosivo de Thompson, resultariam no surgimento de uma diferenciação de Jornalismo Literário, mais ligada à contracultura: O jornalismo Gonzo.
2.1 O que é Gonzo?
De acordo com o próprio inventor do gênero, que é também seu único praticante, Hunter S. Thompson, Gonzo é:
“um estilo de reportagem baseada na idéia do escritor William Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo – e os melhores jornalistas sempre souberam disso.”
Isto não significa que a ficção seja “mais verdadeira” que o jornalismo – ou vice versa – mas que tanto “ficção” quanto “jornalismo” seriam o que Hunter denomina “categorias artificiais”; ambas as formas, quando realizadas da melhor maneira possível, seriam dois caminhos para atingir o mesmo fim.
O jornalista gonzo deve estar presente na ação que descreve, sendo capaz de vivenciar e documentar a experiência ao mesmo tempo, com “o talento de um grande jornalista, o olho de um fotógrafo, e os culhões de um ator”. Uma das características mais marcantes do Jornalismo Gonzo é que suas matérias são escritas sempre com uso da primeira pessoa no texto. O jornalista gonzo dispensa as pretensões à objetividade e escreve quase sempre em primeira pessoa. Suas matérias não são mera narrativa, mas relatos de experiências em que participa da ação. O “eu” do jornalista interfere na matéria: Nela, reportagem e repórter não estão separados, viabilizando através deste estilo crítica, paródia, ironia e alerta. O riso, a gafe, o erro, o inesperado, podem produzir algum conhecimento.
Gonzo é uma espécie de Buñuel do jornalismo. Mais do que tirar fotos engraçadas e escrever textos espirituosos, quer rir de si mesmo, da sua cultura, do próprio ato de rir. Assim como o cineasta espanhol, o gonzo quer mostrar a família defecando na sala e almoçando no banheiro. Para isso, é importante o jornalista partir do "eu", da experiência ao vivo, in loco. Para depois recriar a história, ao narrá-la. Não como quem enuncia uma verdade, mas como quem faz um convite. Você aceitaria?
Para o inventor do Jornalismo Gonzo, Hunter S. Thompson , a objetividade no jornalismo é um artigo raro, senão inexistente: “Todos procuramos por ela mas quem pode apontar a direção? Não se dê ao trabalho de procurá-la em mim – não sob nenhuma linha escrita por mim; ou por qualquer outro em que se possa pensar. Por este prisma, o Gonzo é um jogo com a definição de objetividade jornalística: Através do uso do “eu” em seu discurso, põe em dúvida a apreensão de toda a complexidade que o leitor costuma pensar ter após ler uma reportagem – Até que ponto é possível realmente saber tudo o que se passou em um evento reportado por um jornalista da maneira tradicional, se o relato é “imparcial” e “objetivo”? E até onde podemos confiar no que relata um jornalista gonzo? – O jogo de perspectiva leva o leitor a questionar tudo o que lê, a pensar a informação e não apenas ler e aceitar o que lhe é entregue como um fato, passivamente.
O Jornalismo Gonzo ganhou as páginas de veículos como a revista Rolling Stone, tornando-se popular na década de 60, por abordar temas ligados à contracultura de sua época – festivais de rock, drogas, hell´s angels, entre outros, são temas que atraíram profundamente Thompson ao longo de sua carreira. Neste âmbito, o Jornalismo Gonzo oferece outro tipo de jogo que também tem como objetivo deslocar conceitos e mostrar um outro lado da tão celebrada e disseminada cultura norte-americana e do american way of life. “Eu não obtenho satisfação alguma com a velha e tradicional ótica do jornalista – ‘Eu cobri a história. Eu dei uma versão equilibrada,’ Thompson disse em uma entrevista à revista “Atlantic Unbound”. “O jornalismo dito objetivo é uma das razões pelas quais a política na América tem podido se mostrar tão corrupta por tanto tempo. Você não pode ser objetivo sobre Nixon. Como você pode ser objetivo sobre Clinton?”, concluiu.
2.2 O jogo da consciência
Drogas e bebidas alcóolicas fazem parte do panorama descrito por Hunter S. Thompson na grande parte de suas reportagens. Explicitar o uso de drogas em seus textos foi a maneira encontrada pelo jornalista de derrubar uma abordagem freqüentemente hipócrita sobre o assunto e mostrar como era fácil e comum portar e usar drogas nos Estados Unidos. A cultura norte-americana estava infestada por alucinógenos, álcool, barbitúricos de todo tipo e, para retratá-la de maneira que englobasse cada aspecto de sua constituição, ou cada aspecto que visível e óbvio, o uso e abuso de drogas não poderia ser colocado para debaixo do tapete. Não em reportagens Gonzo.
O primeiro relato aberto de uso de drogas pesadas em um trabalho de Hunter Thompson surgiu em sua reportagem sobre os Hell´s Angels, publicada em 1967 com o título de “Hell´s Angels: A Strange and Terrible Saga”. Em 1965, Thompson imergiu no universo do grupo de motoqueiros para escrever um artigo para a revista Nation. Naquela época, os Hell´s Angels tinham ganhado as manchetes de jornais e revistas nos Estados Unidos como uma ameaça graças a um relatório escrito por Thomas C. Lynch, então secretário de segurança da Califórnia. Seu relatório, conhecido como o Lynch Report, alimentava matérias sensacionalistas sobre os Hell´s Angels na imprensa norte-americana, cujos destaques eram denúncias de estupro, vandalismo e brigas causadas pelos motoqueiros. Trazia, por exemplo, uma denúncia de estupro que havia sido feita pela vítima às risadas, sem que o exame de corpo delito tivesse encontrado sinais de penetração forçada. Thompson procurou desmistificar os Angels, alternando em seu texto trechos do Lynch Report e relatos de sua própria experiência com o grupo.
Thompson decidiu acompanhar o grupo de motoqueiros como jornalista (e não secretamente ou infiltrado), para que pudesse verificar com os próprios olhos como agiam os Hell´s Angels. Seu primeiro encontro com eles não pareceu muito promissor: entre ameaças de surra (Thompson poderia, afinal, servir de exemplo para qualquer outro jornalista que quisesse tentar a aventura depois dele) e hostilidade desenfreada, Thompson conseguiu convencê-los de que queria fazer um trabalho diferente sobre os Angels do que o que vinha sendo apresentado na imprensa então. Por nove meses, Thompson seguiu os Hell´s Angels, o que, inevitavelmente, o levou a abordar o uso de drogas entre o grupo. Isto foi feito sem meias palavras ou qualquer contorno que pudesse distanciá-lo da ação como um observador imparcial.
Os Angels insistem em dizer que não há viciados em drogas em seu clube, e, para todos os efeitos legais e médicos, isso é verdade. Viciados são centrados; sua necessidade física por qualquer que seja a droga em que estejam viciados os força a serem seletivos. Mas os Angels não têm foco algum. Eles devoram drogas como vítimas da fome soltas em um raro banquete. Eles usam qualquer coisa que esteja disponível e se o resultado disso forem gritos e delírio, então que seja.
Passagens como esta mostram que Thompson não nega que os Hell´s Angels vivessem na marginalidade. O jornalista dimensionou os fatos de acordo com as ações dos membros do grupo, sem alimentar o sensacionalismo com que vinham sendo tratados no jornal.
Foi no período passado junto aos Hell´s Angels que Thompson experimentou o LSD pela primeira vez. O jornalista Ken Kesey, que o visitou em um agrupamento de Angels, ofereceu a droga e todos usaram. Foi depois dessa primeira experiência que Thompson passou a usar drogas com freqüência. Em suas reportagens, por estar presente na ação e escrevendo em primeira pessoa, tornou um hábito, a partir dali, descrever situações sob o ponto de vista exagerado e distorcido que adquiria quando ingeria drogas. Relatava, inclusive, que drogas havia ingerido. Ao tratar abertamente de sua relação com drogas legais e ilegais, Thompson oferece uma segunda linha de leitura dentro do texto, quase subliminar, que toca assuntos tão diferentes como a criminalidade e a psiquiatria (o “adrenocroma”, uma hormônio produzido pelo corpo ou liberado pela ingestão de alguns tipos de drogas, surge em digressões de Thompson por conta de sua influência em casos de esquizofrenia), além de questionar a imagem “certinha” mantida para valorizar a profissão de jornalista: ele torce padrões de credibilidade (o que relata é novo e real... mas... não está drogado enquanto o faz? Isso é confiável? É apropriado? Se é real e é escrita instigante e é uma reportagem relevante, então, o que é importante e o que é apropriado e digno de credibilidade?) É uma das maneiras usadas por Thompson para deslocar padrões pré-estabelecidos sobre regras de jornalismo e mexer com noções altamente questionáveis como a da credibilidade e da isenção, já que aproveita suas epifanias alucinadas para liberar opinião em meio ao relato do fato. É sua maneira franca de mostrar que não há a forma asséptica e isenta de desejos, ideologias e interesses no discurso do jornalista.
“Medo e Delírio em Las Vegas” é o exemplo mais radical do que Hunter Thompson podia atingir em relação ao discurso aberto sobre as drogas. O livro cravou definitivamente seu nome na cultura norte-americana e projetou Thompson mundialmente. O autor o considera um “experimento gonzo fracassado”, em que seu método teria fugido ao controle algumas vezes e, justamente por isso, teria sido o experimento mais radical de jornalismo gonzo que Thompson já realizou. Sua idéia era, a princípio, preencher um caderno grosso com relatos dos fatos conforme eles fossem acontecendo durante sua viagem a Las Vegas e publicar o resultado, suas notas, sem edição. O que Hunter acabou conseguindo foi um livro em que ficção e realidade encontram-se misturadas de maneira que não é possível ao leitor distinguir o que é mera invenção de Thompson e o que teria realmente acontecido. Para o autor, isso não é um defeito de sua narrativa mas uma característica dela que não deve ser renegada. Desde suas primeiras reportagens para a National Observer, inventar fatos ou relatar acontecimentos que não tinha presenciado faziam parte do seu estilo. Toda maneira de ampliar a visão do leitor acerca do que pretendia mostra-lo era considerada um expediente válido para Thompson, assim como costumava ser para alguns jornalistas literários que inventavam personagens e diálogos que facilitassem a exposição de algum ponto que, para uma testemunha do fato, seria óbvio, mas para o leitor talvez ficasse pouco claro. Mesmo sem uma linha definida entre realidade e ficção, Thompson consegue traduzir a atmosfera de Las Vegas traçando um panorama da cidade baseado em experiências nas quais é o centro da ação. Justamente por não oferecer distinção entre o que inventou e o que vivenciou, Thompson é capaz de oferecer a dimensão exata da loucura que era estar em Las Vegas: o que há de confuso e embaçado em seu relato traduz para o papel a experiência paranóica de uma viagem em que o repórter consumiu um variado arsenal de drogas, legais e ilegais, e observou e interagiu com a estranha fauna local, formada por jogadores inveterados, prostitutas, junkies, leões-de-chácara, policiais, e outros.
O livro surgiu a partir de um convite da revista Sports Illustrated oferecido a Thompson enquanto ele cobria as investigações sobre a morte do jornalista Ruben Salazar em Los Angeles, junto com seu advogado Oscar Acosta. Salazar, que representava na imprensa uma voz para a população hispano-americana, tinha sido morto por um policial diante de diversas testemunhas, em um bar de um bairro chicano, e Acosta promovia na cidade uma espécie de cruzada contra a impunidade do assassino de Salazar, o que fazia dele um alvo para a polícia, que queria ver o caso encerrado sem que qualquer homem de seu quadro fosse envolvido na confusão. Acosta, àquela altura, andava cercado de seguranças para que pudesse continuar seu trabalho. Hunter Thompson, por sua vez, também encontrava-se em situação delicada: por um lado, era visado pelos chicanos do barrio, revoltados contra americanos brancos desde a morte de Salazar e as investidas da polícia contra suas manifestações nas ruas; por outro, ser amigo de Acosta fazia dele um inimigo da polícia. O convite da Sports Illustrated surgia em um bom momento e precisava ser aproveitado. Thompson seguiu para Las Vegas para cobrir o Mint 400, uma espécie de rally de motocicletas no deserto, e levou o amigo advogado junto, à guisa de descanso de toda a pressão que o Caso Salazar representava. Sua ida para Las Vegas seria “uma busca ao sonho americano”, fosse ele o que fosse (e isto jamais fica claro no livro). Mas para Hunter, voraz consumidor de drogas, e seu advogado, que também não passava muito tempo sóbrio, esta busca deveria ser guiada por “dois sacos de maconha, setenta e cinco gomos de mescalina, cinco folhas de ácido, um saleiro meio cheio de cocaína, e uma grande variedade de pílulas, anfetaminas, tranqüilizantes... Também tequila, uma caixa de Budweiser, um litro de éter e remédios para o coração”. A América seria finalmente visualizada em toda a sua loucura e compreendida como deveria: um pesadelo entorpecido. O sonho americano tinha um lado bad trip ao qual não era possível fechar os olhos, não com a consciência alterada e o corpo vagando enlouquecido por uma cidade como Las Vegas. Ele estava ali, as drogas também, e isso era um fato: Dois elementos indissociáveis e nenhum artifício para tornar o repórter uma entidade pairando, imparcial e objetiva, acima do bem e do mal na ação que descreve.
A revista Rolling Stone interessou-se por publicar a saga de “Fear and Loathing in Las Vegas”
3. A revista Rolling Stone
A revista Rolling Stone foi fundada pelo jornalista Jann S. Wenner em Novembro de 1967, em São Francisco (EUA). Sua redação funcionava em cima de um pequeno bureau, uma loja de impressão, no segundo andar. Em seu primeiro editorial para a revista, Wenner esclareceu ao leitor a linha que a RS pretendia seguir: “(A revista) não é sobre música apenas, mas sobre as coisas e atitudes que a música engloba”. Sua intenção era “cobrir rock and roll com inteligência e respeito”. “Com o passar do tempo”, escreveu em 1993, “passei a interpretar aquela ‘carta-régia’ de maneira bem mais ampla. Entendemos que a música era a cola que segurava toda uma geração junta. E através da música, idéias estava sendo comunicadas sobre relacionamentos, valores sociais, ética política e a maneira como conduzimos nossas vidas. A mídia mainstream na época – filmes, TV, jornais e revistas – estava dando atenção muito escassa ao que viria a se tornar uma das maiores pautas de todos os tempos: a convulsão social de uma geração na América.” O que a RS fez foi dar voz a jovens escritores dispostos a percorrer todos os pontos onde esta “convulsão social” pudesse ser verificada e reportar o que estava acontecendo no país sob novas perspectivas proporcionadas por essa revolução de comportamento. A linguagem, a abordagem jornalística, o estilo – tudo em uma reportagem da RS naquele período passou a ecoar as mudanças que sua cobertura jornalística procurava. O escritor era testemunha e muitas vezes um participante do fato que reportava. Algumas vezes, o círculo de que fazia parte o jornalista, dentro ou fora de suas conexões com o showbusiness, acabava se revelando em alguma pauta que escrevesse para a RS. Um ditado muito comum nos corredores da revista àquela época, segundo a jornalista Marcelle Clements, dizia que “Se você e uma outra pessoa estão fazendo a mesma coisa, é uma coincidência. Se três estão fazendo a mesma coisa, é uma matéria.” Clements escreveu para a RS em 1986 um detalhado artigo no qual investigava uma mudança nos hábitos de sua geração, a geração flower power. Ela observara a mudança a partir de si mesma e depois em seus amigos; o grupo que, na década de 60, usava maconha com freqüência, agora, encaixado em “papéis sociais da vida adulta”, não gostava mais do alucinógeno. Sua curiosidade em relação àquela mudança, observada primeiramente em seu círculo íntimo, levou a jornalista a investigar entre médicos, departamentos de pesquisa universitários, traficantes, usuários, comitês pró-legalização da maconha, polícia e agências de informação do governo durante seis meses. Marcelle pesquisou e escreveu sobre aquela idéia que havia começado a se delinear por conta da observação de uma suposta mudança de hábitos entre ela e seus amigos. Quando a matéria foi publicada, levantou tanto interesse da comunidade e da mídia que a jornalista chegou a fazer a rota dos talk-shows americanos e foi assunto de matérias em jornais e revistas. Uma das conclusões a que chega Marcelle é que, hoje em dia, o uso “liberal” de marijuana feito na década de 60 parece banal porque agora foi adotado em larga escala por gente fundamentalmente “careta”. Por careta, sua definição não compreende a pessoa que não usava ou usaria drogas mas todos que, mesmo usando qualquer artifício que altere seu estado mental, seja incapaz de alterar a sua maneira de pensar em relação a valores que encontravam voz na contracultura da década de 60 e desapareceram quando “o sonho acabou”, desembocando na “década do ‘eu’” (descrita por Tom Wolfe em livro homônimo) e nos chamados yuppies dos anos 80.
Era freqüente, portanto, que a inspiração para pautas sobre comportamento para a RS surgisse a partir da observação dos hábitos de gente comum – uma característica que a redação da revista compartilhava com jornalistas literários mais velhos.
O perfil da revista no início de sua história deve muito à trajetória dos repórteres que contratava naquele tempo. Como conta Wenner, “Eles chegavam de todos os lugares e de todas as maneiras.” David Harris escrevera ao editor da cadeia, onde cumpria uma pena de dois anos por recusar-se a prestar serviço militar; acabou escrevendo uma matéria sobre um herói de guerra que ficara paralítico em batalha, na qual cruzava sua história de dissidência com a do entrevistado. Joe Eszterhas, então repórter de um jornal chamado “Cleveland Plain Dealer”, surgiu na redação da revista levantando suspeitas entre a equipe por conta de sua aparência (“os rapazes da correspondência achavam que ele era da narcóticos”, segundo Wenner). Acabou escrevendo exposes sobre agentes da narcóticos para a RS. Quanto a Hunter S. Thompson, uma das maiores estrelas que a revista já teve em seu staff, apareceu na redação de São Francisco pela primeira vez usando uma peruca grisalha, com um saco cheio de “Deus-sabe-o-quê” em uma das mãos e um pacote com seis cervejas na outra. Falou por uma hora seguida sem parar, e conseguiu vender sua primeira matéria para a revista: “Freak Power in The Rockies, sobre sua tentativa quase bem sucedida de tornar-se xerife em Aspen, Colorado. Depois disso, escreveu “Fear and Loathing...”, além de vários outros artigos para a RS. Tom Wolfe também figura entre os nomes famosos que já integraram o quadro da RS. “The Right Stuff”, livro de Wolfe lançado em (?), é uma extensão de um artigo publicado por ele na RS em 1973, chamado “Post-Orbital Remorse”, sobre o programa espacial “Apollo”.
Lawrence Wright, co-editor da revista em 1985, explica a fórmula da revista em uma frase sobre sua primeira equipe. Segundo ele, era formada por “diabos literários que deixaram de lado as convenções jornalísticas e tabus sociais para encontrar novas maneiras de contar os fatos”.
A responsabilidade de um jornalista que escreve para a RS, segundo Wenner, é “não apenas dar a última palavra sobre um assunto, mas oferecê-la sob um ponto de vista novo e relatá-la de forma poderosa”. Os critérios da revista tinham alguns pontos em comum com o jornalismo literário, usando-os de uma forma ainda mais livre das convenções acadêmicas, usando-os de maneira ainda mais livre que os veteranos do gênero. Jann Wenner lista algumas características que uma matéria precisava ter para ser publicada pela RS:
“Tem que ser sobre algo interessante e importante” ; não pode repetir o que pode ser encontrado em outro veículo; “você tem que ir até lá e apurar/reportar o diabo a quatro sobre o assunto, o que quer dizer: “seja passional, envolva-se, arrisque-se, escreva bem – muito, se necessário – e seja o mais apurado possível em cada detalhe; e no final, dizer a verdade sobre o que você pensa. Esta é a responsabilidade dada aos jornalistas e editores da Rolling Stone.”
Em 1993, Jann Wenner e o co-editor Robert Love lançaram um livro pela editora Virgin, “The Best Of Rolling Stone”, reunindo reportagens publicadas pela revista em 25 anos. Além de “Fear and Loathing in Las Vegas”, de Hunter Thompson, há os destaques em jornalismo cultural, como os textos assinados por Dave Marsh (sobre a cantora Patti Smith) e Greil Marcus (sobre Elvis Presley). Marsh e Marcus, que figuraram no quadro da RS na década de 70, eram influenciados pelo amigo jornalista Lester Bangs, cujo estilo de crítica de música análogo ao gonzo causou sua demissão da revista em 1973.
3.1 RS: Impondo limites ao gonzo
No final da década de 60 e durante a década de 70, a RS havia feito de sua redação uma espécie de enclave gonzo no jornalismo norte-americano, contando com dois pólos: de um lado, o criador do gênero Hunter S. Thompson; de outro, o crítico de rock Lester Bangs. Jann Wenner, o editor, parecia disposto a abrir um espaço permanente para o estilo quando, após ler cerca de 20 laudas de “Fear and Loathing in Las Vegas”, decidiu publicar o experimento gonzo de Thompson nas páginas da revista, em forma seriada. Como “Fear and Loathing” era considerada mais uma versão romanceada dos fatos do que uma matéria propriamente dita, a liberdade dada a Thompson foi relativamnete maior do que desfrutou Lester Bangs. Bangs era crítico de música da Rolling Stone e, entre 1969 e 1973, escreveu pelo menos 150 resenhas de discos e shows para a revista. O estilo de Bangs transferia para a crítica musical e entrevistas características do jornalismo gonzo, como o uso da primeira pessoa, a participação do jornalista na cena que descreve e a utilização de digressões e analogias recheadas de referências ao uso de alucinógenos. A escrita era clara e incisiva como a de Thompson, mas Lester Bangs enfrentaria problemas na redação justamente por não se adaptar ao padrão de crítica comum. Não havia espaço para condescendência ou amabilidades em uma crítica de Lester Bangs. Seu senso de humor iconoclasta era uma arma contra a pretensão e o novo sistema do mundo do rock, uma nova postura que crescia entre grupos e astros, a postura do popstar, que ele desprezava, e cujo surgimento a RS acabou ajudando a forjar.
(...) Os roqueiros “top” têm uma aura mística ao redor deles. O “superstar”, e isso é um estado basicamente doente das coisas, de fato, é o vírus que está fodendo com o rock, (...) que infesta “nossa” cultura dos popstars aos políticos (imagina alguém jogando uma tora na cara de Eldridge Cleaver! Joan Baez!) (...) (precisamos) nos livrar de todas as formas de estilos de vida não-criativos nos quais gente a quem falta metade do talento ou da personalidade ou do carisma que eu ou você temos é elevada à posição de deus. (...) O que precisamos é de mais rockstars dispostos a fazer papel de bobos (...) e se possível fazer com que platéia fique constrangida por eles, desde que não sobre nenhum fiapo sequer da dignidade ou aura mítica em torno deles. Porque toda a pomposa construção criada pela supremamente ridícula indústria do rock, inventada para agarrar uns trocados passando a perna na garotada e encorajando suas fantasias de uma (...) “cultura jovem”, colapsaria e com isso também colapsariam as carreiras de zé-ninguéns sem talento que brotaram dela. (...) É preciso coragem pra ser idiota, e dizer, “Olha, isso aqui é tudo armação, esse show e todas as suas armadilhas de holofotes e drogas e jaqueta (...), e o fato de que você está aí e eu estou aqui em cima não significa nada.”
Em “Uma lenda de nossos tempos” , de 1971, Lester Bangs, que escrevia então para a RS e para outra revista especializada, a Creem (onde o texto foi publicado originalmente), criou um diálogo que sugere, de início, querer envolver o leitor nas reminiscências de um velho sobre a banda de rock The Yardbirds mas revela outra intenção: Na verdade, desviava os holofotes para uma banda esquecida e injustiçada pela crítica no rastro do sucesso dos Yardbirds. Bangs sabia que a maior parte dos leitores do jornalismo de rock naquela época não tinha vivido os anos 60, quando os Yardbirds e o Count Five (a banda que considera injustiçada pela história do rock) estavam no auge. Ele se aproveita disso para desenvolver uma teia de ficção que prende os neófitos, arrastando-os à experiência de quem viu ambas as bandas no passado, o ápice de uma, em 1965, e a carreira obscura da outra. Na situação que inventa, posiciona-se como um sábio idoso diante de um grupo de crianças malcriadas. Para garantir a atenção do leitor, abre o texto com um chamado com toques de auto-depreciação:
- Venham aqui, meus netinhos, deixem este velho colocar vocês no colinho. Enquanto vocês ainda me reconhecem, seus maníacos! (...) Deixe-me colocar este cérebro para funcionar e... que lenda de outrora vocês gostariam de ouvir hoje?
- Que p*** é essa de Yardbirds?
Nesta cena, Bangs se mostra como o portador de uma verdade sem registro histórico a não ser por sua própria memória, mas um sábio que pode rir de si mesmo e permite que sua platéia também ria quando faz com que os personagens de sua crítica/crônica zombem de sua velhice.
Ele começa falando sobre o grupo Yardbirds e, de repente, sua narrativa é minada por várias digressões que constituem severas críticas aos imitadores do som da banda que surgiram no seu rastro, como o Led Zeppelin, que detestava. Sem abandonar a ironia, cria um final sangrento puramente fictício para os membros do Led Zeppelin, no palco, que expressa todo o seu desprezo por aqueles que ganharam dinheiro (“Uma década depois ainda havia gente enriquecendo, fazendo imitações (...) porque os originais não duraram muito tempo”) usando uma fórmula adaptada da música e da performance dos Yardbirds.
Apesar de dirigir sua história no texto a crianças que zombam de tudo que é antigo, músicos e ele próprio, não significa que Bangs estivesse subestimando o gosto ou a inteligência de seu leitor. Pelo contrário, deixava claro que sabia até onde eram exigentes e o quanto prezavam uma história bem contada. As crianças demonstram-se impacientes (“Ah, corta essa babação senil e manda logo a p*** da arqueologia, ou a gente pula fora do seu joelhinho e vai procurar alguma ação. Seu velho!”) e desconfiadas, com um senso crítico agudo e não aceitam perder tempo com besteira; mas ouvem a história até o fim, assim como o leitor não abandona o texto.
Toda a digressão acerca dos imitadores só é compreendida (embora nunca se torne arrastada ou chata – o leitor não se importa de estar lendo uma digressão, uma vez que o texto é tem doses bastants de ironia para entretê-lo ao longo do desvio de assunto) depois, quando Bangs aborda seu verdadeiro tema: Count Five, a banda obscura que havia sido considerada – inclusive pelo próprio Bangs – mais uma cópia de Yardbirds em seu primeiro disco; Bangs explica como desfez essa impressão da banda e passou a gostar não só de seu primeiro disco como comprou todos os outros do Count Five.
Para finalizar, dá a voz às criança sentadas à sua volta novamente:
- TÁ CERTO, MAS QUANDO É QUE VOCÊ VAI CONTAR PRA GENTE DOS YARDBIRDS?!
Uh, hmmmm, sim... bem, essa história vai ter que ficar prum outro dia. Além do mais, quando você pensa bem nisso, Count Five era provavelmente mais importante que os Yardbirds, a longo prazo. É só que algumas pessoas são reconhecidas em sua própria época, outras não.
A verdade que expressa vai além da preferência do crítico sobre uma banda em detrimento de outra. É comum artistas, escritores, pintores e músicos não terem sua obra reconhecida à época em que a produzem: o mesmo aconteceu a Nietzsche, por exemplo, que, segundo o próprio filósofo, teria nascido póstumo. É a esta idéia que Bangs remete na conclusão, sem esquecer de relatar, no meio do caminho, como o funcionamento da indústria fonográfica contribuiu para que o mesmo acontecesse ao Count Five: Ele conta que a gravadora da banda não compreendeu o trabalho e não acreditou nela após seu primeiro disco, impondo-lhe uma divulgação ineficaz, sem investimentos e com má distribuição nas lojas, o que levou o grupo ao ostracismo e a uma posição menos que secundária em relação a outros astros da época. O trabalho de Bangs, aqui, é de recuperação não de uma insígnia ou título para o Count Five mas de resgatar e atrair a atenção do público para música tão fundamental para o nicho cultural que cobre em suas resenhas e artigos quanto a fusão de blues, jazz e rock dos Yardbirds, os únicos a levarem o crédito.
Em 1973, a situação ficou insustentável entre Lester Bangs e o editor Jann Wenner. Naquele ano, Wenner demitiu-o da RS por “desrespeito aos músicos” e Bangs passou a escrever quase que exclusivamente para a revista Creem, da qual se tornou editor. Na Creem, tinha liberdade total para escrever resenhas com títulos como “James Taylor Marcado Para Morrer”. Junto ao também editor e amigo Dave Marsh, transformou a revista em uma espécie de central subversiva contra o fluxo de grupos e artistas puramente comerciais com que a indústria fonográfica vinha alimentando o mercado cada vez mais. Segundo o jornalista Greil Marcus Bangs explica na introdução de “Psychotic Reactions and Carburetor Dung”, foi entre 1970 e 1976, enquanto trabalhava na Creem, que Bangs “descobriu, inventou, alimentou e promoveu uma estética de alegre desdém, um amor por tudo que fosse lixo aparente e desprezo por toda a pretensão” que se tornava uma constante na música de que gostava. Seus esforços encontrariam eco entre 1976 e 1977 em um movimento que incorporaria o não só a estética que pregava como também o nome que dera a ela: punk. O surgimento dos Ramones e outras bandas criando a trilha sonora daquele ideário, o punk rock, na casa noturna CBGB, e dos Sex Pistols na Inglaterra, era uma resposta a tudo aquilo que Bangs desprezava na cena musical da época.