28.7.03

Desterreno

1.

Lembro da caligrafia firme riscando o papel, letra grande e inclinada enchendo as folhas como a boca colada no meu ouvido, salivando denúncias em voz profunda. Varei as páginas sem ler coisa alguma a não ser, de relance, que é um tipo de morte. Evitar ver o resto, primeira coisa a fazer é fechar essas caixas. Quando a conversa pesa, dizem qualquer negócio pra gente parar de falar ou mudar de assunto, amanhã é outro dia, jogar isso no lixo. Eu precisava ficar sozinha, não disse mais que isso; o justo era que eu saísse sem palavras que não pedi pra ler. Mas não escapei do espectro inconveniente da minha consciência, esse bicho que ataca à noite: se dormia, imaginava o que mais estava escrito, o que dizia o obituário.

É um tipo de morte em que o corpo persiste mas inanimado, vazio do que uma vez conhecemos. E são dois que desaparecem, desfigurados pela cisão, irreconhecíveis um pro outro. Os defuntos vão por aí, as mãos francas, abandonadas, roçando todos com veias quentes. Uns ressuscitam, braços – ah, e as pernas suadas - cruzados, mas sobre outro corpo. Estão novos, não se parecem nada com o que foram antes, e têm cheiro de carne viva. Outros seguem em avançado estado de decomposição. Todos irreconhecíveis, de qualquer maneira.

Quem aprende a aceitar a ausência dança sobre a terra que cobre os apegados. É nesses cadáveres que encarna o fracasso e o fracasso é a perda de todos os seus sonhos. Imagine-se despido de todos eles. Imagine-se sem poder imaginar. Querer e ter vergonha da vontade, como se você fosse indigno de desejar.

Quem pode se declarar acabado, fechar a tampa e sumir pro mundo? Eu não sei, ainda investigo uma resposta convincente, que ao menos me deixe dormir; procuro descobrir se eu devo e, principalmente, se eu posso, se existe escolha ou é o mundo que fecha a tampa do bueiro sobre mim. Aqui eu vou me imunizando e protegendo de todos os meus maiores medos, e meus medos foram, por enquanto estive calada, ameaças reais. Isto é pra ser esquecido, isto é um fragmento que eu não posso mais conter. Sou eu falando sozinha, confinada no espaço ridículo do esquecimento, que,

Que me fez pensar em respostas pras palavras que eu não li e que se vingam vazando pela minha cabeça na fumaça da paranóia, entre os infernos e alaskas da mesma estação, nessa cidade sempre quente onde tantas vezes me falta sonho, me falta religião, me falta querer. Quem era, o que eu fiz pra ele? Causei aos dois, são dois sem norte. E que sorriso besta é este que arregaça agora? A boca se desprende do meu ouvido ainda sussurrando remorsos pretéritos e cresce num vulto de terror espesso pelos muros de cimento cru, e as crianças não têm vontade de ir brincar na calçada. Ficam trancadas nos quartinhos remoendo culpas mínimas, sofrendo mais que os corpos ardendo de infância deviam agüentar, mas agüentam, agüentam, remorsos sufocados com biscoito e televisão, crescem dali pra casulos ainda menores. O crescimento é uma atrofia. As que colecionavam sinais, como eu, um dia deixam de confiar neles. Imaginam como seria olhar pela janela gradeada a placa na rua indicando o lugar do seu tempo estacionado, o que veriam senão o passado, redundante? Querer e ter vergonha de querer como se fosse ridículo esperar qualquer coisa, olhar pra frente. Olho pra baixo pela janela que aluguei por (quantas noites?) e enxergo o mosaico da feira a nove andares de mim: pontilhados de vermelho, laranja, verde e riscos vermelhos, brancos e encardido das lonas sobre jalecos sujos, cheiro de alho e peixe subindo junto com a música de um chocalho que não pára de acompanhar ancas gordas e sacolas que passam. Meu plano mais definido é descer e comprar pão, manteiga, leite, meia dúzia de tangerinas. Os odores da feira vão me deixar enjoada, é o máximo de adivinhação que eu faço sobre as conseqüências da execução do meu plano pouco ambicioso. Manhã cinza, a placa do hotel apagada. À noite fica verde e vermelha. Penso pequeno, em cores borradas. A sombra das árvores vai manchando o muro do hotel, formando figuras. Seus dentes crescem pelo muro rangendo no ritmo do chocalho até que a boca se arregace inteira diante da minha janela e alcance meu ouvido molhado de outras confidências: eu tô vivo, e você? Zomba, chchchchchchch, rárá. Se eu ainda soubesse enxergar de certa maneira, adivinhava que o tempo pulsa, respira, remove os mortos enquanto os vivos aguardam pra dar o bote. Ia decifrar futuros nos nomes das ruas, das travessas, avenidas, prédios, pessoas, chamadas de jornal, publicidade nas fachadas, algum bar, pelas festas nas casas dos casais conhecidos, telefonemas e responder meu e-mails, cavar vida, me deixar guiar tonta por caminhos de associações tão bem fechadas em seus universos. Agora sem norte mas tive um carrossel de letras que juntava pra formular um destino, imaginava, imaginava desatenta aos desmandos do que ia fora da minha inconseqüência, que eu exercitava e estimulava acreditando, acreditando como se eu tivesse direito, sonho, fé, gana, eu tinha necessidade de cavar a vida onde ela estivesse se escondendo. Se eu olhasse pela antiga janela com meus olhos de agora, não chegavam à rua, paravam ali detidos na grade, presos num detalhe dos ferros pintados com zarcão, logo eu, que era capaz de ver o que quisesse. Hoje, um medo vergonhoso, a covardia calada. Sinais já não me falam, desaprendi sua linguagem. Protejo minha desconfiança urbana de tudo que cochiche significados secretos. Olho a rua e quero pensar só nesse plano modesto.

Nem mesmo a lembrança do que foi me toca. A memória de tempestades não restaura o que está morto e seco. Pode haver, deve haver sim, não há? outra maneira de existir que não seja sentindo intensamente. Já vi quem tentasse e percebesse que é arremedo,
revivenda mal feita. Ser cínico, escolhendo o vácuo, não salva. Não existe sentir sem intensidade. Vivo, tudo que se sente é a pressão do desejo, pessoas, eventos - ou não é sentir, nem viver. Negar uma fração sequer dessa força pode viciar a percepção e cristalizar no peito o cerne oco da história de quem não procura mais nada pra contar. E aí quer dizer que você já era.










2.

Este muro é azul claro, dentro e fora da casinha, azul claro. Portas brancas, janelas baixas, cortinas de cetim e filó bege deixando vazar luz na sala desde as primeiras horas da manhã. À noite tem carro zunindo na rua paralela, espio os garotos jogando bola no quintal pequeno, driblando entre os canteiros. Minha avó chama, o jogo pára, entramos todos. Eles sentam nos banquinhos dispostos lado a lado na área de serviço, perto da máquina de lavar e do tanque de concreto, encaram a porta aberta pro altar subitamente quietos. Eu visto meu guarda-pó branco no banheiro de empregada, brigo por espaço com as roupas e as bolsas das mulheres que já estão na saleta, cantando, usando guarda-pós brancos. A ladeira já desceu, veio sentar nos bancos de madeira pintados de azul, mães e tias dos garotos, suas irmãs, um homem velho, todos eles puídos, cansados, cantam pra ajudar. Não cruzam os braços nem as pernas. Saio do banheiro e minha avó, ainda avó, me chama com a mão, tenho que ficar na saleta com as mulheres. Canto os pontos imaginando a pedreira e a mata onde a letra da música diz que vivem, e que logo estarão aqui, e eu vou acender charutos pra eles. O corpo de minha avó estremece no centro da roda embalado pelas palmas e a música que chamam. Estremece, gira e é amparada por duas mulheres, estremece e gira e não é mais avó. O caboclo chega e procura sentir com os pés descalços esse novo solo, passa os olhos pela sala tentando compreender o que vê, o corpo de minha avó agora está levemente curvado, pende para a esquerda, e o braço direito descansa o tempo todo atrás sobre o quadril. Fico de frente pra ele, tiro do bolso uma caixa de fósforos e um charuto, que lhe entrego e acendo obediente, as perguntas queimando dentro de mim. Aonde foi minha avó agora, se pela boca da minha vó um homem fala frases curtas numa língua truncada, e fuma, me pergunta entre baforadas como eu vou? Solta fumaça no meu rosto, nos meus ombros, me vira pra fazer o mesmo nas minhas costas, me vira de volta e olha como se não me visse. Risca uma cruz na minha testa com a Pemba branca. Agora eu tenho que ir pra perto da porta e esperar o momento de acender o próximo charuto. Todos os que sofreis e estais oprimidos, Ele vos aliviará.

Às onze já foi todo mundo pra casa. Eu na varanda com meu avô, gordo e moreno, triste. Ele não tem que descansar, descansando tem muito tempo, não sai nem mais pra um sol, uma cerveja. Não consertava mais os relógios, o liquidificador. Não acreditava mais que funcionariam se montasse de novo com esses parafusos sobrando do lado de fora. Brincamos de bar: vou na cozinha, apanho uma garrafa de água e dois copos, conversamos sobre o que nos propomos ver na calçada do boteco. À nossa frente, as plantas do quintal num escuro absoluto, o muro azul, insetos. Tá vendo esse cara magro sugado de barba rala sem camisa? Via o que queria, via pescador. O sol rasgando o mangue cheio de bichos e ele puxando o barco pra gente passear, as pernas finas enterradas até a cintura na lama, é Zé Luiz. Tem gente que ainda vive de peixe. Disse que os peixes todos se alimentam do mangue. Fiz uma história pro colégio com o Zé Luiz mas o tema era a família, não serviu. Paciência, a vida depende da maré. Vira o copo.

Meu avô bebia água resignado, sentindo o gosto da cerveja.

















3.

Prendo o cabelo num coque pra não impregnar tanto com fumaça. Ele vê, me chama no balcão. Quer meus cabelos soltos, quer meus sapatos altos e desconfortáveis. Pras canecas chegarem rápido em cada mesa é preciso mais que dois braços - tem que ter coxas de fora, tem que ter cabelo caindo nos ombros. Três mesas ainda vazias, mas em duas horas isso aqui vai ficar abarrotado de garoto novo da Zona Sul e coroa gringo gastando os tubos, álcool e papo em todos os sotaques e variáveis de inglês, português, alemão, italiano, é um encontro aberto de alienígenas, cabe até brasileiro, os que acham que reina aqui a convenção válida pras embaixadas, a ilusão sutil de que estamos em território estrangeiro. Alguns garotos daqui eu até entendo que gostem do lugar, por curiosidade, mas qual o álibi dos gringos, qual o objetivo de escapar da friaca tediosa natural de seu país pra América do Sul e se enfiar toda noite num bar, que eu acho que é exatamente o programa que esses gordos fazem em cidades pequenas atoladas em neve onde não acontece muito mais que campeonato de dardo? Vai ver que a graça é justamente essa. Ou só se aprende saudade longe, eles não têm saudade noutras línguas, aprendem ela aqui, e a matam como sede, com a cerveja que eu sirvo. Muitos estrangeiros acabam baixando nesse bar porque trabalham no Brasil há anos e às vezes precisam falar de novo inglês ou dialetos insondáveis encharcados no gosto amargo. “Às vezes”, em cockney carregado, quer dizer “toda noite”. Esses caras chegaram num estágio tão avançado de alcoolismo que não o encaram como vício ou doença, mas parte do corpo, um órgão a mais sem o qual não desempenham suas funções vitais. Não aparenta fazer mal pra saúde deles e faz bem pra minha bolsa.

Acendo o último cigarro na paz relativa das oito e meia. Trago o tempo e tusso um pigarro sem religião. Pretensioso, mas anoto no guardanapo, guardo debaixo de uma garrafa de Bailey´s. Hoje eu tenho a chance de sair mais cedo, vou ver um conjugado amanhã de manhã. Mas é só uma chance, uma possibilidade, que depende exclusivamente do fator sorte. Madrugada de sono ou de bandeja na mão, isso depende do americano sentado junto do balcão num banco estilo tô-na-selva que é um tronco de árvore partido. Se à meia-noite o homem de chapéu de feltro e rabo-de-cavalo grisalho conseguir fazer os dados marcarem seis e seis cada, estou liberada. Essa foi a proposta do dono. Bate 0h e Tom decide minha noite com um sete, eu fico. Com vontade de jogar uma garrafa no espelho atrás do balcão e justificar de uma vez a sorte, nos cacos os fatos iam ficar de uma clareza descomunal. Há Um horrível cacófato nos fatos dos cacos, mas.

O bar da Atlântica é do homem de corpo largo, cara larga, sorriso largo socado atrás do balcão. Nasceu em São Paulo há quarenta e dois anos, dos quais 35 passou no Rio, onde desvirtua um pouco a atividade que sua família desempenha há gerações no Bexiga: em vez de massa, vende cerveja, cerveja pra caralho. Sirvo cerveja – por enquanto, mais que eu agüento beber, menos que a quantidade consumida por ele numa noite. Vai ver que até às 4h da manhã todo o bar já bebeu mais que ele, mas é uma corrida acirrada. E o outro barman também enche a cara. Eu e o --- estamos autorizados a entornar uma boa quantidade de cerveja toda noite, cerca de oito canecas por cabeça, desde que a gente fique de olho nas mesas; brasileiro, gringo, nesse ponto é tudo igual: tem uns que, se der mole, saem sem pagar. Tirando os que fregueses antigos, tem que desconfiar de todo mundo. Cerveja importada aqui vende melhor, é mais cara que a nossa, mas no ritmo que a gente vai mandando não sei como pode dar lucro. São os gringos assíduos, tipo o Tom, que pagam a vida do bar. Uma caneca da sua cerveja importada preferida custa quatro vezes mais que a nacional e ainda sai barato pra eles. Tudo no Brasil é barato pra quem tem dinheiro de verdade. Peguei o trabalho aqui não faz um mês, já dá pra alugar um cubículo juntando gorjeta com o fixo das semanas.

Tom, fios grisalhos escapando pelas abas do chapéu, olhos azuis pastando pelo bar tranqüilamente do copo pra minha camiseta, da lâmpada fraca pro balcão. A mancha vermelha no braço parece uma queimadura, é uma queimadura, no início eu achava que ele sempre aparecia com uma porque trabalha na cozinha de um hotel da Avenida Atlântica, chapéu de mestre-cuca em vez desse de palha equilibrado no topo de um metro e noventa de altura. Loirra, querro ma-is Machadou deh Assis. Tem português suficiente pra entender Dom Casmurro mas a pronúncia, como era de se esperar, é uma bosta. Fala arrastada que nem fita cassete velha enrolando no aparelho de som. Emprestei uns livros, ele traz pedaços de salmão grelhado do almoço e o que mais tiver limpo em cima da pia no fim da tarde. Diz que já cozinhou pra rainha da Inglaterra, no bullshit, antes do hotel. Penso nisso quando eu como, mastigo me divertindo só de imaginar as remotas e improváveis conexões de Tom com a nobreza; janto de pé em cinco minutos o que ele me trouxe hoje, veio também arroz com brócolis. Não consigo parar de olhar pra queimadura no braço de Tom, é uma circunferência pequena na carne mas dessa vez rasgou fundo. E é uma besteira, é o jogo de viciado mais besta que inventaram depois daquele do Burroughs e eles às vezes chegam a fazer até sóbrios. O único jogo desses que eu me meto a fazer é o dos dados. Se der doze, eu saio. Sempre dá outra coisa qualquer que nem passa perto de doze, deve ter alguma treta nesses dados. O outro jogo do Tom é encostar o antebraço no antebraço de outra pessoa e colocar um cigarro aceso entre os dois. Quem amarelar primeiro, paga a rodada. Tom já se considera um especialista em literatura brasileira, tanto que largou no meio a leitura da versão americana de Quincas Borba porque achou que a tradução não foi fiel ao estilo do autor. Ele reclama que o braço do outro freguês era mais cabeludo por isso a pele demorou mais a queimar que a sua. Paga a rodada sem fazer cara feia porque Tom é um homem bem-humorado, mas vai ter próxima vez, sempre tem.

Domando cavalos, driblando as mesas, agora todas ocupadas. Tentei pensar onde foi que deixei de querer, ou se deixei de querer. É difícil arrancar tudo, são palavras espremidas de um pensamento vagaroso.

- Eu tinha medo de você. – O barman me diz agora rindo, mas o que diz é sério. Escuto muito isso. E cada vez parece mais medo. E eu sempre querendo dizer uma coisa e acabo dizendo o seu contrário, que é a verdade, ou nada. Olho muito sem dizer nada esses dias, mas não é que não goste deles. Basta meia hora encostada nesse balcão pra alguém começar a contar sua vida como se estivesse num consultório ou coisa assim, mas eu não falo nada de mim pra eles. Senão volto a ser o que eu era, reavivo um modo de vida extinto. O engano é achar que todos sabem; cada ato, mesmo um ato repetido, é sempre inédito, seja entre diferentes pessoas ou as mesmas combinações de gente. Queria ser totalmente sincera um dia, fazer uma promessa: se eu entender novamente o sentido que perdi, que eu diga tudo.



Não gostava das coisas ditas com silêncios. Achava egoísmo guardar as palavras na cabeça e apresentar a cara mais lavada, como se eu só pensasse no meu trabalho ou nas coisas que precisava comprar. Pra que tudo não se resumisse às ordens grudadas na geladeira com ímã, de minha parte eu teria lambido as feridas do outro, feito coisas bonitas e santas como levar conforto onde o conforto é apenas tela flat e poltrona reclinável. Minha caridade agora é inversa e remunerada: não falo muito, escuto; e boto cerveja quando me pedem.


4.

Só nossa equivocada noção de tempo pode conferir ao que nunca aconteceu de verdade a qualidade de uma fronteira intransponível, tão real quanto a tela do computador na minha frente. Sob a superfície desse tempo inventado, recriado, tenho um sonho recorrente – vivo nesse sonho - fora do tempo, dentro do mundo.

Há cinco anos, eu nunca sabia se por trás do vidro espelhado do prédio da Avenida Rio Branco era fim da tarde ou já altas horas.

Eu apurava, eu, entrevistava, escrevia, programava o HTML, fotografava os eventos com a minha própria câmera digital, manipulava as imagens, publicava as notícias e as matérias e as imagens no site da empresa. Respondia aos e-mails e telefonemas dos leitores satisfeitos e insatisfeitos com o serviço, organizava promoções com produtos que nossos clientes divulgavam, respondia e-mails e telefonemas de participantes contentes ou descontentes com os brindes, a maioria descontentes, exigindo isso e aquilo, ameaçando procurar o diretor da empresa, rogando pragas, bufando e babando.

Na primeira semana no emprego, fui treinada por um espanhol barbudo a prestar atenção, ao mesmo tempo, em cada uma das atividades relacionadas a ser assessora de imprensa da multinacional sovina que não queria pagar mais de um profissional pra fazer o serviço de três. Numa salinha pouco refrigerada, ele me ensinou os macetes do emprego e foi comprar cigarros em Porto Rico ou coisa assim. Às vezes mandava um e-mail reclamando de algum aspecto do trabalho que considerava mal e porcamente executado ou dando as coordenadas pra que eu puxasse o saco desse ou daquele cliente. Meu cheque era depositado mensalmente por alguma entidade desconhecida e tudo que eu tinha que fazer era assinar um papel e mandar por fax para... Porto Rico? Pouco me interessava.

Agora me interesso menos ainda pelo que vai dentro dos distantes prédios do Centro da Cidade, o que aquelas pessoas pensam do lado de dentro dos janelões de vidro fumê são coisas muito tristes. Um vez circulou no escritório um e-mail intitulado "Você vai ser demitido". Foi o único spam que já li na minha vida. A mensagem dizia que, um dia, da copeira ao Superintendente Superimportante de Comunicações Intergalácticas, todo mundo vai pra rua. E em qualquer empresa. Portanto, é preciso sugar o quanto antes tudo que você puder, arrancar da empresa cada vantagem que puder oferecer. Você tem telefone na sua mesa? Faça lo-ongas ligações interestaduais, internacionais, dê aquele alô demorado pra um amigo que foi morar longe. Pegue muitos táxis, coma em bons restaurantes, durma com a consciência limpa em hotéis caros e inclua as notas de tudo entre as despesas de suas viagens de trabalho. É o mínimo que você pode fazer; afinal, eles estão chupando o seu sangue.

Eu me demiti depois de anos fingindo que não percebia a mão da empresa por baixo da minha saia. Apesar de agora eu não dispor de um puto sequer no bolso nem perspectivas de arranjar o dinheiro fixo mensal que eles espirravam na minha conta bancária, a parte do meu cérebro que ainda pensa está aliviada. Prefiro trabalhar num bar que cheira a peido de cebola envelhecido a ver aquela gente outra vez.

Tem esse irlandês que passou seis meses em Copacabana enchendo a cara e comendo mulheres gostosíssimas com dinheiro que fez como fiscal de minas no Zimbawe. Christy "Twodogs" levou um pé da namorada e largou o caminhão na Irlanda pra coordenar trabalhos (forçados, sei lá) nessas minas. Ele diz que a fome do brasileiro jogado na rua em Copacabana, pedindo um dinheirinho a quem sai do banco, é uma fome ridícula perto do que viu por lá, onde tinha vergonha de comer e beber com as ruas lotadas de cadáveres natimortos e zumbis esqueléticos. Um verdadeiro filme de terror. Evoquei o Nordeste mas pra ele não serviu. "Nunca mais quero ver aqueles rostos novamente, dá vergonha de estar vivo", dizia, entre um pint e outro de cerveja escura e cremosa a R$ 19. Ele definitivamente precisava de seis meses de putaria no Brasil pra se reafirmar como ser humano: estava ficando compassivo demais, deprimido demais, preocupado demais diante daquele desfile de restos de gente.

Christy tinha 52 anos e dois brincos de argola dourados e grossos na orelha esquerda. Parecia um traveco equivocado de bigode. Eu fui idiota de perguntar pra quê os brincos. Ele levantou da mesa e foi até o mapa da Irlanda, que fica bem do lado do espelho com a marca GUINESS pintada em cima. Eu com dor nas pernas e nas costas de tanto andar pra cima e pra baixo com trezentas canecas por hora e agora vinha um sermão. Por causa de dois brincos idiotas. Fui até o mapa com o coroa e aí ele começou a falar muito empolgado dos gipsies da Irlanda, que não são bem assim uns ciganos lendo a mão dosotro na rua ou mudando de acampamento pra acampamento, são um dos grupos que se encheu da Inglaterra e dos ingleses (que, segundo ele, têm dentes mais podres que os irlandeses mas eu não sei não) e explodiu um bocado de prédio e carro na parte da tomada da Irlanda. Do jeito que o coroa falava da Inglaterra, dava pra ter raiva até dos Beatles.

"Fiz um monte de merda anos atrás, coisa que a gente faz quando é novo. Mas alguém tinha que se mexer, não é?" No braço esquerdo, o Christy tinha tatuado o símbolo do renascimento da Irlanda forte, uma fênix. No Brasil, fez outra fênix no braço direito, que aí ele dizia que era o símbolo do seu renascimento. Ele queria casar comigo e me levar pra uma dessas encantadoras minas de trabalho escravo. Eu cheguei a concordar quando ele fez a proposta, mas assim que fiquei sóbria e entendi que ele não estava brincando nem me oferecendo só um jeito de obter dupla nacionalidade, pulei fora. Ele ficou deprimido e passou a andar atrás de mim que nem um bicho na rua todo dia depois do trabalho. Tive que parar de passar pela porta dos bares onde eu sabia que ele ficava, senão ganhava companhia pra qualquer coisinha besta que eu quisesse fazer, fosse um passeio pela praia ou um cinema ou procurar outro emprego. Depois de quase um mês nessa história, ele desistiu e foi embora. Acabei tirando folga do bar na noite da despedida dele. Fiz de propósito, mas porque eu realmente não acreditava que ele fosse embora.
O dois cachorros bebeu muito nesse bar antes de partir pra mais uma temporada de trabalho lá fora, onde pagam bem. Christy nunca é demitido, Christy sai do emprego e vem pro Brasil comer mulatas e bolinho de aipim. Nossos Christies nunca conseguirão ir à Irlanda beber Guiness com o dinheiro que conseguem transportando laticínios num caminhão que nem é deles. Melhor pra eles, aliás.

A maioria dos gringos gastam pilhas de notas graúdas em passagens de avião, hotéis, passeios organizados por trambiqueiros em agências de viagens etc. e tudo isso só pra ver as mesmas coisas que a gente mais FUDIDA tem aqui ao alcance de um ônibus. Às vezes nem isso: basta descer a Rocinha, a Nova York das favelas, e cair direto numa puta praia aberta. Só os visitantes endinheirados têm direito às cadeiras reclináveis de plástico azuis e brancas do Copacabana Palace ou do Marina mas o que há de errado com as que são alugadas a dois reais pelos barraqueiros do Leme a São Conrado? Pagam muito caro pelo que temos de graça, tendo nós um emprego fixo ou bicos ou nada além de tempo pra vagabundear.

Eu simpatizo mais com os gringos pedreiros e caminhoneiros e vigilantes com bom coração em minas e membros de obscuras facções do IRA do que sou capaz de tolerar os esbanjadores dos palaces da orla. Eu admito que os gringos mais ferrados que vêm pra cá só falam um monte de merda - não são Joyce, não são gênios. Mas isso é porque vivem bêbados e são mesmo mais simples que um botão. Mas têm todo o direito de desperdiçar aqui o dinheiro que fazem, passando os dias na praia e as noites em bares que reproduzem a atmosfera de sua terra natal, pubs ingleses e irlandeses que são sucesso na noite da Zona Sul do Rio de Janeiro. Eles estão cagando e andando pra qualquer traço da nossa cultura que não seja bem curvo, rechonchudo e rebolativo. Alguns deles vivem em Manchester e nunca ouviram falar no Hacienda nem na "cena de Manchester", nem naquele filme que os modernos brasileiros ficaram se borrando nas filas em portas de cinema pra assistir num festival qualquer; eles não vão a shows, não compram CDs, não sabem quem é o novo Nick Hornby nem querem saber. O que você esperava, senão isso mesmo? Sangue europeu, e daí.

Mas o que dizer de homens e mulheres com diplomas, MBAs, ternos, coques, óculos mais caros que o aluguel do meu conjugado, laptops, mais da metade da população do Centro da Cidade - e agora eu falo do Brasil e do Rio de Janeiro e também de outras cidades brasileiras que não se auto-proclamam maravilhosas - circulando alucinados pelos arranha-céus e muito especificamente pelo 19o. andar daquele monstro de fachada de espelho, todos congelando o cu no frio do ar-refrigerado máximo que protege os computadores mas transforma o sangue em blocos de gelo, e aí o seu ranger de dentes é a única coisa capaz de interromper o fluxo ininterrupto de MERDA que jorra pelas suas bocas sisudas. Falam tanta baboseira sobre pessoas, sobre o que chamam de mercado, a vida, os filhos, e a própria empresa, essa empresa despirocada, que eu achei que estavam todos bêbados no meu primeiro dia no escritório. Mas eles não têm esse álibi. Estão sóbrios e o máximo que aquelas cabecinhas produzem são seqüências de números e ações de marketing ineficazes que não chegam a um terço da atividade mental de um irlandês semi-analfabeto e severamente alcoolizado.

Todos as manhãs eu dizia bom dia pras chefias, que não respondiam senão por um meneio sem qualquer expressão na cara ou uma olhada rápida pra desaprovar o que eu vestia. Aqui é diferente. Toda a falsa impressão de cordialidade entre patrão e empregados é dispensada como supérflua desde as primeiras horas da noite. E justamente por não haver necessidade de manter as aparências, acabamos nos tratando bem espontaneamente, isto é, às vezes, quando sentimos vontade, e até nos divertimos quando não estamos estressados demais com o trabalho. É claro que eu não achei bacana quando ouvi as primeiras - e únicas – instruções pra trabalhar no lugar:

"Se você vê uma barata ou um rato, você n?o grita. Você mata. A caixa d´água está vazia há meses. O bar é abastecido por um caminhão pipa. Geralmente, a água dura até as nove horas. Se um cliente perguntar por que a água acabou no banheiro, você diz que tivemos um probleminha com a bomba hoje e que amanhã será resolvido. Na primeira semana, coloque todas as gorjetas na caixa coletiva. Depois da quarta semana, embolse as mais altas mas não na frente das outras meninas. Todas podem fazer a mesma coisa, desde que não arranjem confusão umas com as outras. Alguma dúvida?"

Insetos, ratos, falta d´água... parece tudo tão fácil. Ah, e os clientes inconvenientes... nenhum deles é tão repugnante quanto o Sub-Gerente do Departamento de Marketing da Companhia de Internerd Gastrointestinal. Desse eu me lembro bem porque contei aos meus amigos sobre ele na primeira semana de trabalho por lá. Sua estupidez era tão sólida quanto uma mesa ou um peso de papel. Só me cumprimentava quando eu tava de saia ou vestido. Dava uma manjada nojenta e aí falava com aquele bafo de cocô, como é que tá? Logo nas primeiras semanas, no entanto, descobri que havia outros naquele cemitério vertical melhor ajustados, como eu: um cara que sumia durante o almoço e parte da tarde pra dormir no estacionamento com as pernas pra fora do carro e um trio de garotas do SAC que viviam se agarrando pelos corredores mas seus superiores achavam que aquilo tudo era só uma puta amizade forte ducaralho. E de certa forma era. Eu até que sinto falta das meninas.


Mesmo com tanto material suspeito bem debaixo de seus olhos, a gerente decidiu implicar foi comigo. Perguntou às moças se não me achavam meio esquisita. Esquisita era seu eufemismo pra homossexual. Elas me contaram isso às gargalhadas num almoço em que decidimos pular a parte da comida e ficamos só na cerveja. A gerente achava que tatuagem em mulher era um indício de homossexualidade. Eu tenho algumas (nenhuma é uma fênix), portanto, eu deveria gostar de boceta. Se eu fosse um homem gay tatuado, teria que gostar de boceta também. Claro que isso só faz sentido na cabeça duma mulher muito da porca. Uma vez, o banheiro feminino da empresa passou um dia inteiro fechado e tivemos que usar o de um restaurante vizinho porque a pomposa figura vestida em linho e lenços tinha jogado um absorvente gigantesco e imundo dentro da privada. Tenho a dizer a favor da minha atual clientela que as irlandesinhas bêbadas e cheiradas como loucas limitam-se a mijar na tampa da privada mas nunca entopem de propósito o banheiro que vão ter que usar a noite toda. Principalmente quando falta água. Elas sempre tomam o imenso cuidado de não jogar nada dentro do vaso que possa acumular com seu material pra exportação.

Eu não durmo mais à noite. Pego às 18h e vou até as 5h da manhã, bandejas, copos, canecas, garrafas, tips, tits e inglês afiado. Em um ano, quem sabe, junto dinheiro suficiente e faço uma visita ao Christy e suas duas tatuagens horrorosas de fênix.


4.

O trompete à frente de tudo, da voz e da cantora e do pianista, cada nota soprada me lembra de um grito que podia dar. Eu podia tomar banho agora, com o ralo tampado pra fazer uma banheira que me cobre só até o meio das costas, emudecer amortecida pelas bolhas na água ou cantar junto com o disco um tempo, até decidir que estava bem limpa, bem quente, que podia vestir o jeans, o top, um casaco amarrado na cintura, tênis pra andar até Ipanema, tomar um café na livraria, jornais, e voltar, lá pelas tantas um vento mais gelado de fim de julho, um refrigerante no quiosque, comer a refeição do dia, o resto é café, refrigerante, cerveja, vinho, ver gente, cruzar com um conhecido que ia perguntar desses dias e aí eu não ia saber o que dizer. Por isso não desci ainda, tenho medo de encontrar alguém, eu ia tentar fugir, eu ia ficar sem palavras, ia receber um recado dele, se não recebesse ia ficar pensando no recado que não recebi, ia mandar sinais pela pessoa conhecida, ia querer saber dos outros, ia acabar bebendo com todo mundo mais tarde, iam querer saber o que aconteceu, e eu não sei o que aconteceu. Melhor não descer. Agora não porque me passou vagamente a idéia de que vou encontrar um conhecido na praia. Pela velocidade com que veio o pensamento de que eu encontraria essa pessoa, qualquer pessoa que pudesse falar comigo sobre pouco tempo atrás, essa impressão rápida de que a encontraria é quase a certeza de que irei encontra-la. Preciso me deter um pouco mais nesse pensamento para espantar a possibilidade de a intuição se concretizar, destruir a sutileza da insinuação, que é o que faz as coisas sussurradas acontecerem, não se ater às insinuações de possibilidades.

AS IMAGINAÇÕES DISFARÇADAS, UM BREVE HOW TO

Começando assim o manual:

- O que você fez no fim-de-semana?

- Nada demais – responde uma pessoa qualquer que envolvo neste exemplo para um manual simplificado sobre as intuições, pro caso de algum leitor desatento gostar de saber como evitar que se tornem fatos. Os fatos nos cacos ficam mais coesos. Nada, pousei tigres (ou qualquer resposta desse tipo; a resposta aqui não tem a menor importância, o que importa é que foi feita a pergunta) – havíamos parado aí, a pessoa do exemplo. Ela não podia revelar a verdade, é claro. Havia passado a noite fazendo o que tem que ser feito nesses casos, ou seja, nada além de imaginar disfarçadamente o que desejava que fosse feito. Assim: quando se despediram no encontro antes desse diálogo, ela havia desejado muito que o outro perguntasse na semana seguinte o que tinha feito durante o fim-de-semana. Ora, pra conseguir que ele lhe dirigisse a expressão genuína de tal interesse, o procedimento era apenas um: deveria imaginar, muito suavemente, que lhe era feita a pergunta, e feita, especificamente, por ele. Mas não se pode imaginar de uma maneira agressiva, ruidosa (ainda que o ruído ecoe apenas dentro da cabeça de quem imagina) quando o objetivo da imaginação é a concretização do fato imaginado. É preciso, portanto, imaginar disfarçadamente, sem fixar o trabalho mental de maneira obstinada e clara sobre o evento imaginado. A imaginação disfarçada, ou disfarçata ,deve surgir espontaneamente, num átimo de segundo, e desaparecer entre outros pensamentos corriqueiros sem que a ela se dê qualquer importância além de uma breve constatação – é essencial o termo constatação – é preciso constatar o evento imaginado disfarçadamente como fato consumado; ou que é fato corriqueiro e insignificante co que se pode contar garantidamente, como contamos com o jornal na porta de casa todos os dias, salvo aqueles que não assinam qualquer periódico e têm mesmo o hábito de repudiar a imprensa. Sendo assim, quando a pessoa do exemplo percebeu que sentiria imenso prazer em que o outro do exemplo se interessasse pelo que ela tinha feito no fim-de-semana, seguiu imediatamente pro aeroporto Santos Dumont e comprou uma passagem pra São Paulo, onde passou o resto do fim-de-semana obliterando aquele instante breve em que desejou ouvir a pergunta. Não é fácil afundar a memória e esperar (sem esperar) que ela volte à tona quando menos se espera, travestida de fato concretizado no futuro. É um processo realmente complicado, pelo qual eu poderia pegar uma vida inteira de camisa-de-força se os loucos hoje não andassem livres. Eu imaginei disfarçadamente que ia te largar e, um dia, realmente. O problema é que o que imaginamos nem sempre é o que desejamos que aconteça.

É preciso ter imenso cuidado com a imaginação porque hoje não se cuida mais dos loucos, a lei permite que vivam soltos por aí. Se alguém enlouquece por causa da imaginação, precisa internar-se por conta própria. Num conjugado, noutra vida, pobres paranóicos desatados porque a rotina conhecida não comporta mais suas idéias. A definição de rotina també pode ser obtida através de um exemplo. Perceba:

COMO TERMINAM AS VISITAS

Se for numa sexta-feira ou sábado, vocês estarão lá pelas três da manhã sentados em torno de uma mesinha com recortes de queijo (quadrados) e salsichas temperadas (algo cilíndricas). Há copos vazios mas já se foi a disposição de novamente enche-los. Os encostos sob os copos trazem os rostos de Jane Mansfield, Rita Hayworth, Marlon Brando, Groucho Marx manchados de vinho, cerveja e refrigerante. Não lembram sequer o motivo da visita. Geralmente, é sem motivo algum que acontecem. Olhe disfarçadamente seu (sua) acompanhante enquanto a dona da casa conta a trigésima história sobre bichos, gatos ou cachorros, ou ainda uma incrível girafa do Discovery Channel, ou seu filho no colégio ou vizinho inconveniente. A essa altura, tudo parecem histórias de bichos, são todos quadrúpedes. Olhe para seu (sua) acompanhante e perceba um esgar que logo se transforma num frenético revirar de órbitas e então um imenso bocejo. Seu amor tem várias obturações e mostra todas quando quer ir embora. Concentre-se – não é difícil desvencilhar-se das palavras ruminadas na sala, são como um perfeito mantra bovino hmm hmm hmm – inicie a comunicação telepática com o seu benzinho, que pode se chamar Bem-Proporcionado ou Svetlana:

- Svetlana para Bem-Proporcionado (ou vice-versa): gostaria que existisse um Deus do qual eu pudesse cobrar prova de Sua existência agora através do envio de um raio certeiro que fulminasse a anfitriã caso ela emende outro assunto.

No meio de mas frase que continha qualquer coisa de “... mamou até os oito anos...”, seu (sua) acompanhante simplesmente bate com as mãos espalmadas sobre os joelhos e se levanta dizendo “vambora?”, o que a anfitriã ignora e continua “...por isso fiz o silicone, oito anos puxando aqueles peitos com a boca...” e você corta confirmando “tá na hora” e beija o rosto da anfitriã enquanto ela ainda fala sobre a amamentação e, lá do fim do corredor, já quase alcançando a porta do elevador, ainda se ouve sobre aquela vez em que o menino perdeu um dente no colégio e mobilizou todo o corpo docente para encontra-lo.

Quase ninguém mais se casa no papel. Quase ninguém mais se casa e ponto, a coisa é essa, a maioria das pessoas se juntam e se separam sem o embaraço dos cartórios, da igreja; de testemunhas, só os amigos que freqüentam o apartamento e o bar, o que deve fazer tudo mais fácil quando acaba, pelo menos no quesito burocracia. Dar menos satisfação a menos gente que os cento-e-poucos convidados habituais dos casórios de outros tempos. Não tem padre nem prestações pendentes do bufê que façam doer a consciência de um casal que decide pela separação precoce. Mas eu continuo neurótica: se eu encontrar um conhecido, ele vai querer saber os motivos, e eu vou dizer que enlouqueci, que acredito em sinais, que é precisamente isso que faz de mim uma doida, que eu não servia pra ele, que sou mística – há tipos de esquizofrênicos co tendência exacerbada ao misticismo, eu podia falar sério sobre imaginações disfarçadas e sua influencia nos fatos, como se eu acreditasse nisso, e ele levaria a coisa toda a um analista que diagnosticaria “esquizofrênica” com algumas reservas, “olhas, eu não posso afirmar com certeza se não acompanho pessoalmente o caso, mas o fato é que exista pacientes que...” e eu ficaria livre de me explicar porque é sempre mais fácil ser doido que mau-caráter nesse mundo e eu, definitivamente, ultimamente, tenho desconfiado que sou uma mulher sem caráter, e só isso, minhas grandes idéias, meu tédio, não é talento nem loucura, é só mau-caratismo, sem-vergonhice, niilismo, cretinice, e que provavelmente era isso que estava escrito no resto da sua carta que eu não li.










vertendo sonho em papel amassado

Cada tremor era como uma queda da qual eu nunca poderia me erguer e, no entanto, passando a me atirar com freqüência, vi que me não só me levantava como tornava a me jogar.

Numa cama estreita, insone, sóbria, chocando meu tédio... por que não lá fora? Porque aqui eu não erro, aqui tenho todas as qualidades. Admiro a pintura que descasca no teto como se fosse a capela cistina, o resto do fumo no cinzeiro dá um fino mal enrolado mas não me dá sono.



Às 23h a portinhola de aço da lixeira bate contra o trinco. É a hora de o meu vizinho levar o lixo pra fora. Nunca estipulado em conversa alguma, respeito seu relógio de neurose. Prefere não cruzar com ninguém enquanto faz isso. Deu pra notar quando topei com ele no corredor, cheio de sacos plásticos na mão. Foi na mesma manhã que o ouvi urrar que gozava numa mulher que gritava sem palavras, um som seco estalado na garganta, acompanhado das batidas da cama contra a parede, em ritmo perfeito.

Ao me ver no corredor depois de sua magnífica foda, abaixou imediatamente a cabeça, atirou as sacolas pelo buraco na parede e voltou apressado pro seu cubículo como um rato. Desde esse dia que só joga o lixo fora às 23h, tenho certeza que primeiro espreita por uma brecha de porta aberta pra ter certeza de que não tem ninguém ali. Se ele ouve bater uma porta no seu andar e o som do elevador movimentando por correntes de 50 anos, ele espera até não escutar mais nada pra sair, despejar o lixo e retornar à toca.

O que ele não sabe é que não adianta se esconder, que é tudo é uma lixeira enorme e cavamos nela investigando os restos uns dos outros. Eu quero ver seu lixo, antes mesmo de me livrar do que trouxe em caixas de papelão pra minha internação voluntária. Lixo no meu quarto pequeno, nado na onipresença dessas caixas, ignoro a baderna, como sempre fiz, e tento circular, respirar e pensar aqui dentro. Todos os prédios são caixas de papelão, eu olho pelas frestas da minha caixa pros buracos nas caixas de papelão vizinhas e vejo os ratinhos lá dentro brincando de circular nas mesmas idéias uns dos outros na frente do tubo de imagens e é satisfatório imaginar que eu não sou a única incapaz de ter um pensamento original.

5.6.03

"Com esse eu casava", podia dizer ou pensar, se fosse o caso de viver num século em que ainda se faz isso - casar, falar ou

pensar em casar. Matrimônio já foi a norma vigentes; hoje, ficar na defensiva é o padrão pra quem não tem padrão, ou seja, a

maioria que se divide entre apatia e hiperatividade. Em qualquer dos dois modos, a norma vigente é a ansiedade. A senhora de

quem eu falo - e só de falar já me lembro do seu jeito nervoso de mexer os cabelos e da mania de retorcer os clips de metal

nas reuniões - enquadrava-se na abrangente categoria das pessoas divididas, posso até confirmar pra vocês, "um pouco

esquizofrenicazinha, coitada". Ela se dizia de poucas pessoas, de um ou outro caso a que dava mais importância que devia, e

normalmente tinha uma puta urgência de viver. Se estava dentro, queria ir pra fora, se estava fora, queria ficar só do lado

de dentro. Os dias apáticos tornavam esse aspecto ainda mais interessante de ser observado porque, uma vez abatida e

desesperançada, sua agonia tornava-se ainda mais evidente. Confessava-se: com amigos, com vizinhos, com moleques de 13 anos

em chats, com o chefe. "Eu preciso fazer alguma coisa!" O quê, sobre o quê - não sabia, não tinha idéia e essa era parte de

sua agonia. Queria dar forma ao mundo, coordenar o caos, guiar seu fluxo, evitar catástrofes, e descansar em resultados

satisfatórios. Queria ter controle sobre as coisas que não podem ser controladas.

Num movimento automático, tenso, vestiu a camisa branca que trazia como saída-de-praia. Mas não ia embora, não podia ir.

Escondeu busto murcho e estômago projetado com a prudêcia não de uma natureza excessivamente pudica e, portanto, deslocada no

tempo, mas por reconhecer constrangida-pesarosa (derrota) a defasagem de seu corpo em relação aos das outras mulheres que

tomavam sol ali pelo Posto Nove. Era o que a língua portuguesa, essa bela criatura em eterna transformação sobre a qual os

dicionários e filólogos não têm qualquer domínio, era, enfim, o que a língua havia denominado como baranga - fenômeno

universal e atemporal que recebera essa nova alcunha no Brasil entre o final do século XX e início do XXI.

Não, não dava mais pra ir embora. Tinha achado um cara, um rosto, um estranho - vai ver ele carregava jeitos de outros

amores, tatuagens parecidas, curvas de músculos que ela conhecia do passado - precisava ficar e descobrir o que era. Por que

prestar atenção nele, naquele cara específico, quando a praia estava cheia de infinitas possibilidades, várias delas até

menos díspares, mais adequadas aos seus trin-ta-e-cin-co anos? A pele e a turma em volta dele denunciavam um final de

adolescência; podia ser que 20, podia ser que 18. E aí a balzacona, a véia não podia nem rir sozinha tirando o cu da reta "eu

podia ser mãe dele" porque nem isso: ela já tomava pílula quando ele nasceu! Escândalo, saída-de-praia, benzadeus esse

menino. Ficou olhando.

Ele jogou frescobol, apertou um senhor baseado, fumou, mergulhou, voltou se sacudindo como cachorro, levantou um dedo pra

pedir Skol, dormiu de bruços, virou de lado, acordou, bebeu outra Skol. Foi interrompido pelo celular em todas as etapas

enumeradas. Até que a galera dele finalmente deu sinais de que ia levantar acampamento o psujeito ficou de pé com as quatro

tanajuras sem celulites (uma incrível vantagem sobre toda a praia aquelas quatro vagabundas) e o magrelo espinhento de cabeça

raspada que parecia ser disputado por três delas. Mas despediu-se. Voltou a se sentar na areia assim que o grupo deu as

costas pro mar.

Ela precisava ficar ainda mais e ver que ele era daqueles neo-hippies aloprados que batiam palmas pro pôr-do-sol; iria então

pra casa tranqüila, guardando menos rancores por conta das suas irreparáveis diferenças. Mas o rapaz, o guri, o MOLEQUE puxou

da bolsa de pano um caderno e começou a rabiscar meio furioso uma folha atrás da outra. Parecia que tava bêbado. O clap-clap

pro sol começou às sete e ele não largou a caneta pra aplaudir. "Deve ser lição de casa", ela ficou achando, ficou cacucando

ndono fundo da memória pra lembrar como era fazer dever de casa com a cabeça numa coisa hipotética, que nunca tinha visto

ainda - sabotando com material de seu próprio pocinho fundo de cinismo o interesse que tinha por aquelas folhas de papel. A

auto-sabotagem é uma arma fina e feminina, sacada sempre que a imunidade da mulher defasada é abalada por algo desconhecido e

embasbacante de tão bonito. Porque ele era

bonito. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto e nem devia ser tão belo assim: esses eram os piores casos. Achar

perfeito o que não é perfeito, reconhecer que um nariz é de batata, que um par de orelhas são de abano - não que a figura

dele combinasse tais exatas características - e ainda assim ser capaz de afirmar beleza no erro... lembrou My Funny

Valentine
, doce, cômico, engraçado, o rosto menos que grego e que era assim que as coisas começavam, mesmo estando na

cara que nada ia acontecer. E arrematou a sabotagem lembrando que, se standards já eram antigos quando ela tomava

pílula e ele nascia, hoje era ridículo lembrar que eles existem.

Enquanto o guri, o MOLEQUE nascia, ela comprava entrada pra ver o AC/DC no Rock In Rio I (UM!). Enquanto o rebento vinha ao

mundo, ela perdia a virgindade com um amigo do irmão no estacionamento das Casas da Banha (rede de supermercados extinta).

Enquanto uma incauta expelia o resultado dum espirro de pica gosmento que, ninguém apostaria, ia se tornar a coisa mais

bonita que a COROA já tinha visto, a coroa tinha uns 15 anos e dava mais que chuchu na serra. Naquela época, aliás, a

expressão "dava mais que chuchu na serra" era nova. Búzios não estava tão cheia de argentinos, Ipanema não tinha livraria com

café 24h, o tráfico limitava-se a vender as paradinhas sem grandes conflitos e era isso aí. "Roque Santeiro" era estréia, não

reprise, e Michael Jackson vendia disco. É, disco, VINIL, que CD só chegou depois. Era melhor nem pensar.

E, no entanto, desde que bateu os olhos no moreno, seus dentes não cabiam mais dentro da boca. Só fazia rir. E tinha medo que

aquilo acentuasse os vincos que ressentia no rosto, que externasse o óbvio: que era uma velha, uma velha cheia de graça pra

cima dum garotinho. Um resto de sol mirava firme na linha dos seus olhos e isso fazia com que risse mais que o riso

espontâneo - espremia um pouquinho a vista pra evitar os últimos raios alaranjados e ver o menino. O menino tinha se

levantado e, agora, virado pra ela, continuava a rabiscar. Não podia ser uma coisa dessas; devia estar esperando o cara da

Skol virar também pra pedir mais uma. Não podia ser que andava na direção dela. Apertou mais os olhos e viu, sem controle,

sem querer, veias debaixo do short de tac-tel - viu imaginando, dentro dos próprios olhos ainda pintados de resto de sol,

porque quase não podia enxergar fora da própria cabeça naquele momento. Porque era crucial: a beleza caminhava decidida a

encontrá-la. E era um farrapo, ela, um farrapinho de trin-ta-e-cin-co anos, AC/DC, Roque Santeiro, vinil. Terrível! Ajoelhou

do lado dela.

Se pudesse ter fixado os olhos em qualquer ponto, sem o nervosismo que a fazia piscar como um estrobo descoordenado, teria

definido à sua frente as coxas retesadas, um risco fundo em cada lateral, um peito com pêlos certos de uma cor não definida

entre o castanho e o loiro, tatuagens iguais às de outros tempos talvez. Não viu nada disso. Ouviu:

- Oiii. Desculpa eu ficar olhando, mas é que.
- Oi! (num fode)
- Tudo bem? É que eu queria te desenhar.

Num fode.

- Por quê?...////...///?!...///
- Desculpa, eu sou meio cara-de-pau. Mas tenho que ser porque às vezes eu vejo alguém na rua, bate uma idéia... Eu estudo

Belas Artes. Queria te desenhar.
- Por quê?
- Sabe Gustav Klimt?

Sabia Klimt. Talvez ele soubesse My Funny Valentine. Tudo era possível agora.

- Tô fazendo uma aula de art nôvô. Você parece a Judith, tem uns dois quadros dele com esse nome, uma mulher.. eu podia fazer

uma Judith na praia, biquíni aceso, os prédios atrás. Ia ficar muito doido. Podia meter serigrafia, Warhol, alguma coisa em

cima disso, misturar tudo.

Não conhecia o quadro, Judith parecia mais nome da avó de alguém, e meter em cima e misturar tudo era uma puta idéia.

Fumaram. Aparentemente, o MOLEQUE tinha um peso inteiro dentro da bolsinha de pano, e seda, tinha seda, não precisavam pedir

pra ninguém nem incorporar desconhecidos ao ritual, embora alguns resistentes do pós pôr-do-sol estivessem de olho grande pro

baseado deles. Na praia, horário de verão, céu claro às 19h, ainda fica uma penca de gente seca por um baseado. Um maluco e

outro calibrando pra naite, insistindo na fiscalização dos derradeiros biquínis. Às vezes, rola um showzinho em palco

improvisado ou mesmo sem palco, na areia da praia mesmo, com eletricidade puxada dos quiosques do calçadão. Não era o caso

naquele fim de dia. Não tinha nem mesmo um péla-saco tocando violão. Só ela, o menino e uns desocupados perdidos espalhados

desencanados. Riram tanto, conversaram, descobriram afinidades e um monte de coisa nadavê entre os dois que, por se

comunicarem com o que parecia ser uma curiosidade mútua um pelo outro, funcionavam exatamente como as afinidades - ou seja,

como ponto de apoio, não de desestabilização do contato. E ele ainda queria desenhar.

- Mas fica melhor sem a blusa.

Posou abraçando os joelhos, mas de um jeito descontraído. Trocaram e-mails, esperava receber dele um esboço nos próximos dias

ou, quem sabe, o produto final daquela tarde estranha.

- Você me escreve?
- Escrevo, Judith.
- Agradeço, Klimt. - deixou um sorrisão vincar-lhe os cantos da boca. O garoto deu-lhe um beijo no rosto. Ela não dormiu

naquela noite.

Era ridículo ir pro trabalho cheia de olheiras por causa daquilo. Levantou-se da cama sem ter descansado, alimentou o gato,

tomou banho quente, limpou a caixa do gato, vestiu-se, beijou o gato entre as orelhas, fechou a porta e saiu. Foi assim de

segunda a sexta-feira, as bolsas debaixo dos olhos cada dia mais escuras. E nenhum e-mail.

O risco-país aumentou por causa da possibilidade de o candidato à presidência pela oposição ganhar as eleições. Uma

possibilidade, entre tantas outras, projetava-se do futuro para o presente e alterava esse presente, fazendo o mercado

tremer. Pulou num clique da página de política para o horóscopo. "Faça um acordo com o Tempo: você deseja as coisas e elas

vão acontecer, se você fizer todo o possível para isso. Mas só quando Ele decidir. Paciência." Tinha, e muita; precisava

recordar os lábios grossos, a expressão dos olhos pequenos enquanto desenhava, o jeito como ele a estudava, a vitória de ter

sido escolhida para o retrato entre tantas mulheres na praia superlotada. Queria eliminar as preocupações que lhe causavam o

fato de ele ainda não ter enviado e-mail algum com qualquer retrato. Tinha que confabular com o zodíaco e fazer as coisas

acontecerem. E, mesmo com todos esses afazeres mentais de extrema importância, precisava escrever sua coluna sobre a

repercussão das pesquisas eleitorais no mercado. Ignorou o burburinho nas baias adjacentes da redação e começou:

"É preciso negociar com o Tempo..." Sua opinião era de extrema importância para que as pessoas tivessem paciência. O futuro

devia ser abandonado à frente, enquanto as mentes ansiosas que especulavam sobre ele fizessem o caminho de volta ao presente

para vivê-lo sem a restrição a uma única possibilidade. "Tudo é possível agora mas, se projetamos as expectativas num só

acontecimento, paralisamos o presente. É provável mesmo que o capital produtivo e sua correia de transmissão - investimentos,

ampliação, produção, serviços, empregos, salários, encargos, tributos, confiança e futuro - sofram com um arrocho após a

eleição. A vitória do candidato representa um risco de ruptura, pois os governos de seu partido pelo país sustentam um

histórico de apoio às invasões e quebras de contrato (vide o caso do Rio Grande do Sul). O mercado é resultante da razão e

ação de 6 bilhões de pessoas, de modo que, quando o risco-país aumenta, sinaliza receios e incertezas. Portanto, investir por

aqui com a possibilidade de ele vencer, é arriscado. Para atrair capital e investimento teremos que pagar mais. O risco-país

é a realidade que vem do futuro e temos que estar preparados para encará-lo." O garoto-do-futuro, Marty McFly agora com

Parkinson, tinha 24 anos quando fez papel de um adolescente em "De volta para o futuro", filme de 1985. Não parecia velho.

"O que não podemos controlar, devemos esquecer", lembrou o almoço com um velho colega de redação, do tempo do estágio, ele

disse exatamente isso: não tentar controlar o que não está ao nosso alcance para ser modificado. Era inútil, a ansiedade,

mais uma vez, a dominava - agora por urgência de viver, de explorar mentalmente e exaustivamente o desenrolar de uma

determinada situação definida; não por conta de um marasmo absoluto em que nenhuma possiblidade se aventava, como nos dias em

que se sentava em frente à TV para assistir a 42 horas de CNN e matar o fim-de-semana. Hoje havia uma possibilidade, mas seu

único desdobramento interessante era encontrar Klimt na praia. O nome era Beto (não sabia se de Roberto, Alberto ou Humberto)

e Judith, ou Ana Maria Chávez, não tinha mais paciência pra explicar ao país que era preciso correr riscos. Escreveu,

portanto, apenas: "É preciso correr riscos".

Sua coluna estava pronta, não se incomodou em revisar. Não releu mais que o primeiro parágrafo. Pegou a bolsa e saiu

perseguindo Ipanema. Era uma sexta-feira e a praia estava cheia das pessoas que gozavam de férias no verão e os adeptos das

férias permanentes. Fugir da redação no meio do expediente era uma realização gostosa, perturbada apenas pela incerteza do

paradeiro do garoto entre o mar de bundas redondas e perfeitas que inundava a areia. É que naquele dia ele não foi, mas não

fazia mal. A praia tinha pedaços dele em tudo que era canto, grão, respingo de água salgada, que ele certamente tinha se

lavado, mijado, nadado, dormido ali.

Não ia receber desenho porra nenhuma. Ele tava só fumado. Ou não. Podia ter ficado sem conexão. Artista é meio maluco, não

paga provedor, usa internet na faculdade e na faculdade nada nunca funciona, lembrava bem de como era no seu tempo - nem

computador tinha. Aliás, faz tempo. Melhor esquecer. Ou não. Podia ter deixado o telefone, era mais seguro. Mas se ele não

ligasse seria pior, porque... que tragédias podia imaginar para um pedacinho de papel com seu número anotado que

justificassem um não-telefonema? "O telefonema de um bêbado é uma coisa myuito importante", lembrou mais uma vez da época do

estágio, dessa vez um amigo de quem ela gostava - gostava até mais do que ela chegou a confessar pra gente naquela de

barzinho e confissões - era ele, tentando explicar porquê tinha ligado na noite anterior dizendo coisas embaralhadas. Mas ela

não quis entender, ele era alcoólatra - só isso - e ela sabia muito bem o que acontecia com mulher de alcoólatra. Estava aí

um caminho que podia prever. Nunca mais falou com ele, nem quando recebeu o convite de casório do cara. Só comentou comigo,

muito por alto, que a dúvida era se ele gostava dela porque vivia de porre ou se podia gostar também sóbrio. Afinal, era

melhor assim, ele nunca ia deixar de beber e ia espancá-la umas três vezes por semana, mais do que conseguiria ficar de pau

duro pra trepar ao longo de um mês inteiro. Melhor assim, porque dizem que no casamento ele não encostou nem no champanhe

porque não era mais nenhum adolescente e na verdade tinha inventado de jogar tênis e vivia numas de geração saúde desde

então. Paciência, quem podia imaginar?

No fim do dia, depois que o sol e o último baseado se extinguiram, levantou-se da areia sentindo ainda uma besteira de

esperança ao vestir a camisa branca de botões por cima do biquíni. Olhou a água onde já refletiam os postes do calçadão e

gostou do mar respingado daquela luz artificial. Vinha uma ou outra onda pequena, que um labrador amarelo, puxando seu dono

pela coleira, tentava abocanhar quando a água virava espuma na areia.

Foi embora seca, já era de noite. Passou na livraria da Visconde de Pirajá pra comprar Colomy.

preciso fazer as unhas apaixonada.

- Num é esquisito esse negócio de obrigado-obrigado quando a gente conmpra alguma coisa ou pede uma comida, tipo esse cara

agora na farmácia, tu comprou o Sorine e disse obrigada quando ele te deu o troco e aí ele disse obrigado também, e um

retruca o agradecimento do outro, eu acho artificial pra caralho, acho mais artificial que o agradecimento sozinho de um só.

pintar as unhas, apaixonada. - É meio esquisito mesmo. Parece que os dois lados são culpados de um crime que ninguém sabe o

que é. A língua denuncia...

- Isso é academicismo, um ismo. Por falar nisso, eu achei o teu conto meio fora da realidade. eu gosto muito de ter a

liberdade de dizer o que eu pensei, principalmente, prefiro dizer alguma coisa que te faça falar bastante porque se eu disser

só "interessante" você só vai dizer "obrigada".

- Fora da realidade? Tô no caminho certo, então. É pra ser ficção. ficções o melhor borges o seu escritor preferido.

- Não é isso... 35 anos, velha? Trin-ta-e-cin-co é nova à beça, a mulher é nova. agradar.

- Mas eu quis ela neurótica, se achando acabada. Ela tá de olho num garotinho numa época em que, aos 20, as mulheres ´tão

fazendo plástica, lipo, três horas de academia. E, na verdade, em qualquer época trin-ta-e-cin-co anos pra mulher já era, pra

homem ainda tá garotão. hipócrita.

- Você não tem medo de parecer vazia? eu acima te como. Eu acho que isso é futilidade eu, acima.

- Já passei da idade de me preocupar com o que os outros vão achar. fazer as unhas.

- Mas o conto acaba assim?

- "Ela tava só fumado"?

- É.

- É, acho que vou parar aí.

- Você tá largando a história por algum motivo. Te incomodou escrever isso?

Era melhor sentar num buraco pra conversar essas coisas, de repente adega portugália de novo? ele pode enjoar ele pode não

sair mais comigo pegar metrô, ida e volta quase cinco reais, ela professora ganha bem mas ele aluno ganha bolsa furreca e

mora com a mãe, mas que merda.

Tinha um espaço entre uma aula e outra. Ela fazia mestrado, era redatora publicitária, tinha publicado uns contos aí. Ele

começava a achar que tinha feito o vestibular errado depois de passar no funil de 300 candidatos por vaga em comunicação

social; devia ter feito Letras. Mas, uma vez lá, ganhar dinheiro com publicidade um dia. Escrever outras coisas hobbie. Não

tinha pressa, tinha 19 anos. conheceram num seminário, ambos carregava "ficções" borges.

(isso não tá muito auto-biográfico não?)

(o Sabino-"encontro marcado"-Fernando através do espelho o Graciliano-"não há arte fora da vida, não acredito em romance

estratosférico. o escritor está dentro de tudo que se passa, e se ele está assim, como poderia esquivar-se de

influências?"-Ramos? pretensão mulherzinha barriga no tanque etc etc)

- E outra... não dá pra acreditar numa colunista de economia bem-sucedida solteira. Pior: que larga o expediente pra ir pra

praia atrás dum garotão. Ela trabalhava num grande jornal?

(já tavam em frente à portugália, escolhendo uma mesa na calçada do largo do machado).

- Tem muita gente sozinha e bem-sucedida no mundo, não é difícil.

- Acho inverossímel.

- E isso que você tá dizendo não é um pensamento rasinho? Ser bem-sucedido é não ser solitário? Você tá acabando com o meu

texto. É tão ruim assim?

- Você não aceita crítica! Não é pessoal, é crítica ao tra-ba-lho.

- Mas o trabalho sou eu!

- Então é auto-biográfico?

- É bio-degradante. Auto-degradante. Rárárárá.

Ráráráriram na terceira cerveja. (trabalhar melhor o personagem, é mais jovem, talvez 19. não pode ser tão atirado e ela não

deve ser tão complacente (bunda-mole) porque superior te como. desde que me conheceu seus dentes não cabem mais dentro da

boca. continuo escrevendo a história na cabeça).

- Nada ali é por acaso, entendeu, são camadas...

- Eu acho chato. Você tem quanto, 46, 47? Porque não fala disso, de querer um MOLEQUE, estando você com essa idade? Esse

negócio da neura dela, de ela ter trin-ta-e-cin-co anos de idade, isso aí é um disfarce que não tá pegando, eu acho que você

tinha que assumir a tua idade, o que você sente por causa disso... Qual é o problema da coroa pegar o garoto? É aí que travou

o texto.

- Eu não tenho nada com isso, é uma personagem, entendeu. Não travou, o texto é isso, é poético.

(meu vinho seco na caneca da portugália, quase posso ver as unhas dele são limpas, um garoto bom como eu, um pouco menos

sacana que eu talvez, e ela fica levando ele pra esses lugares).

- Ah, tu quis fazer um negócio moderno e sentimental.

- Sabe como é que a gente sabe que ainda tá na modernidade e que a pós-modernidade nunca existiu? Quando um espirro de pica

que nem você fala esse tipo de coisa.

Rárárá. Ela ainda:

- Fica categorizando: "sentimental", "mUderno"...

- Normal, porra, cresci assim. (não tem mundo antes disso pra mim, digo, para o garoto - é mais jovem que eu).

- Daí não conhece outra coisa, autenticidade é sempre questionável, não tem nada que se salve.

- Por que você não escreve sobre aquela festa no Consulado que você pegou o maluco atrás da cortina do gabinete do cônsul?

- Tu vai usar isso contra mim a vida toda.

- Contra não, a favor. É experiência, não é? Tu não tava cheia dos graciliano, dos sabino? Escreve... transforma.

- Ah, MO-LE-QUE.

(EU SOU MO-LE-QUE, mas é comigo que tu fala essas paradas. não sei o que é. lembra dum e-mail de uma amiga tua de Washington

com piada de mulher: com a "igualdade entre os sexos" veio CULPA feminina pós-queima de sutiã; elas - eu não! eu não! -

tratando esses putos falidos a pão-de-ló e eles se achando brédi píti mas é tudo saco murcho. (parou pra beber a oitava

caipirinha) mesmo assim não dá pra sucumbir ao cinismo, por mais manés que sejam esses caras que a gente gosta, porque não

tem coisa mais corta-tesão que cinismo).

(Ga-ro-to. As maçãs envolvem os corpos nus nesse rio que corre em veias mansas dentro dentro de miiiim. A melhor coisa desse

bar é a trilha sonora de anjos e arcanjos ousam nesse édem infernal / e a flecha do selvagem matou mil aves no ar / quieta a

serpente se enrola nos meus pés / é lúcifer da floresta / venha amor / que o paraíso / num abraço amigo sorrirá pra nós). Meu

amor macio, tinha Mutantes na época, eu 17. You think we look pretty good together ... i look pretty young but i´m just back

dated yeah.)

(o que você acha que eu devia fazer? não acho isso certo. não me interessa. eu acho que não vale a pena. não me interessa. eu

não vou deixar de fazer, eu uso o que eu quiser e não preciso explicar. mas se você procurasse um jeito de apresentar isso

com mais... clareza, deixar óbvio que é ficção. é ficção, não é? se não ficou claro, metade do problema é de quem lê. a minha

parte tá feita. quanto menos gente paranóica no caminho, melhor. mas você não acha que podia ganhar alguma coisa com isso? eu

sou totalmente ignorante. e eu tô cagando e andando. pensa nas pessoas que gostam de você. a decepção só existe quando ainda

existe expectativa. e profissionalmente. profissionalmente pega muito mal pra você. imagina como esse último texto foi lido.

ninguém vai te dar um emprego depois de ler isso. e daí? é o nirvana da existência. eu arrebento a tua cara usando apenas a

força do meu espírito-de-porco. essas coisas que você tem dito sobre seu patrão ter hálito de fezes... sim, bafo de cocô.

você não acha um pouco infantil? não. teoria da dependência. não tenho superiores. se você parar de beber agora, pode morrer

como lester bangs e o pai do henry miller. meu avô era um sapateiro comunista. há alguns anos, descobriram que ele tinha 13

mulheres trabalhando pra ele na praça mauá antes de conhecer minha avó. o sogro o obrigou a largar um negócio lucrativo pelo

casamento. antepassados presentes como fantasmas de chapéu e terno brancos humildes desde a primeira visão aos sete anos,

nunca poderia disfarçar essa origem distante e transparente por causa das gerações seguintes que foram à universidade com

dinheiro de catador de papelão. eu não fui genética e historicamente constituída pra escrever (estudos culturais, inglaterra,

década de 80) como você acha que isso deve ser feito. e, no entanto, o que é isso que acabo de fazer? pode imprimir e limpar

o rabo se quiser mas vai continuar sendo o que eu imaginei em primeiro lugar e não o que você quer que seja.)

(as maçãs envolvem os corpos nus)

- Oi?

- Tô cantando.

- Ahn.

(sem ninguém nos ver).

- Esse bar é meio rípi.

- Me chamando de velha, o moleque filho da puta.

De repente cessao o fluxo e eu só enxergo o escuro fora dos meus próprios olhos novamente. Dentro, apagados, duas mulheres,

uma que se acha muito velha, outra que não se acha tão velha assim, dois garotos muito novos, eu, talvez, aos 17... primeira

pessoa. "Numa cama estreita de carne e sonhos, sem dormir..." Aqui não erro, aqui tenho todas as qualidades. Começar a

escrever nas férias.


***














Numa cama estreita de carne e sonhos, sem dormir, por que não? Sair... mas aqui não erro, aqui tenho todas as qualidades.

- Tu tá muito sensível. Serinho.

- Mas chamou de rípi. Categorizando.

- Cê que sabe.

- Clarice Lispector e Chico Buarque.

- Que que tem?

- Ele deu toco nela. Por quê?

- Porque ela era velha.

- Razoável. O desejo tá atrelado a isso?

- O dele, provavelmente, tava.

- A questão, MO-LE-QUE, é que rola uma certa tradição, MANJA? (manja, 70´s, quando você não era nem embrião), de o sujeito

contar história que tem mulher e ela vira suporte bucal de piroca ou deusa delicada inatingível da punheta. Não tem mulher,

mulhé mulé mermo não tem (cerveja). É como se ela não quisesse nada, só amor na ponta duma pica e o cara fosse o mártir dessa

empreitada fuderosa em que ele consente e ao mesmo tempo conquista, ela uma coisa que não quer-querendo, que na verdade não

tem muita escolha porque a coisa lá tá feia.

- E não é assim? Vê aquela menina que faz aula contigo, 80 quilos de querer-querendo e fazendo de que não quer mas qualquer

negócio que chegasse junto ela travava até o talo.

- Razoável, razoável. Ela não tá errada.

- E tá errado quem descreve isso? Quero dizer, desses que falam de toda mulher que conhece como se fosse a pobre da puta que

comeu mal de pau mole quando veio no Rio fazer prova pro Globo. O lance de ser cínico, eu sei, dá pra entender, é de agora,

se ele não fizer isso se sente corno, e o tempo todo a narrativa em primeira pessoa (eu na verdade gosto muito) e a mulher

calada ou no máximo hmmm hmm com uma rôla na boca... mas tem que ser isso?

- Depende... depende... (morte). Tu tem a opção de virar a Jane Austen de calça do século XXI, qué? É 8 ou 80.

(chega de beber aqui meu amor, vamo dar uma volta)

- Vamo andar, Marco.

29.5.03

"É com esse que eu vou casar", teria dito, se vivesse num século em

que o matrimônio era norma vigente. Num movimento automático, todo

tenso, vestiu a camisa branca que trazia como saída-de-praia. Mas não

ia embora, não podia ir. A prudência de esconder o busto e o estômago

não partia de natureza excessivamente pudica e, portanto, deslocada

no tempo: reconhecia, com certo constrangimento e pesarosa derrota, a

defasagem de seu corpo em relação aos das outras mulheres que tomavam

sol ali pelo Posto Nove.

Não, não conseguia ir embora. Tinha visto um cara, um rosto, um

estranho - talvez ele carregasse jeitos de outros amores, tatuagens

parecidas, curvas de músculos que ela conhecia do passado - precisava

ficar e descobrir o que era. Por que prestar atenção nele, naquele

rapaz específico, quando a praia estava cheia de infinitas

possibilidades, várias delas até menos díspares, mais adequadas aos

seus trin-ta-e-cin-co anos? A pele e a turma em volta dele

denunciavam um final de adolescência; podia ser que vinte, podia ser

que 18. E aí a balzacona, a véia não podia nem rir sozinha com a

clássica "eu podia ser mãe dele", porque nem isso: ela já tomava

pílula quando ele nasceu! Escândalo, derrota, saída-de-praia,

benzadeus esse menino. Ficou olhando.

Ele jogou frescobol, apertou um senhor baseado, fumou, mergulhou,

voltou se sacudindo como cachorro, levantou um dedo pra pedir Skol,

dormiu de bruços, virou de lado, acordou, bebeu outra Skol. Foi

interrompido pelo celular em todas as etapas enumeradas. Sua galera

finalmente deu sinais de que ia levantar acampamento e ele ficou de

pé com as quatro tanajuras sem celulites (uma incrível vantagem) e o

magrelo espinhento de cabeça raspada que parecia ser disputado por

três delas. Mas despediu-se. Voltou a se sentar na areia assim que o

grupo deu as costas pro mar. Ela precisava ficar ainda e ver que ele

era daqueles neo-hippies aloprados que batiam palmas pro pôr-do-sol e

ir pra casa tranqüila, guardando menos rancores por conta das suas

irreparáveis diferenças. Mas o rapaz, o guri, o MOLEQUE puxou da

bolsa de pano um caderno e começou a rabiscar qualquer coisa. O

clap-clap pro sol começou às sete e ele não largou a caneta pra

aplaudir. "Deve ser a lição de casa", ela pensou, sabotando com

material de seu próprio pocinho fundo de cinismo o interesse que

tinha por aquelas folhas de papel. A auto-sabotagem é uma arma fina e

feminina, sacada sempre que a imunidade da fêmea defasada é abalada

por algo desconhecido e embasbacante de tão bonito. Porque ele era

bonito. Era a coisa mais bonita que ela já tinha visto e nem devia

ser tão belo assim: esses eram os piores casos. Achar perfeito o que

não é perfeito, reconhecer que um nariz é torto, que um par de

orelhas são de abano - não que a figura dele combinasse tais exatas

caracteísticas - e ainda assim ser capaz de afirmar beleza no

erro... lembrou My Funny Valentine, doce, cômico,

engraçado, o rosto menos que grego e que era assim que as coisas

começavam, embora ali estivesse na cara que nada ia acontecer. E

arrematou a sabotagem lembrando que, se standards já eram

antigos quando ela tomava pílula e ele nascia, hoje era ridículo

lembrar que eles existem.

Enquanto o guri, o MOLEQUE nascia, ela comprava entrada pra ver o

AC/DC no Rock In Rio I (UM!). Enquanto o rebento vinha ao mundo, ela

perdia a virgindade com um amigo do irmão no estacionamento das Casas

da Banha (rede de supermercados extinta). Enquanto uma incauta

expelia o resultado dum espirro de pica gosmento que, ninguém

apostaria, ia se tornar a coisa mais bonita que a coroa já tinha

visto, a coroa tinha uns 15 anos e dava mais que chuchu na serra.

Naquela época, aliás, a expressão "dava mais que chuchu na serra" era

nova. Búzios não estava tão cheio de argentinos, Ipanema não tinha

livraria com café 24h, o tráfico limitava-se a vender as paradinhas

sem grandes conflitos e era isso aí. "Roque Santeiro" era estréia,

não reprise, e Michael Jackson vendia disco. É, DISCO, vinil, que CD

só chegou muito tempo depois. Era melhor nem pensar.

E, no entanto, desde que bateu os olhos no moreno, seus dentes não

cabiam mais dentro da boca. Só fazia rir. E tinha medo que aquilo

acentuasse os vincos que ressentia no rosto, que externasse o óbvio:

que era uma velha, uma velha cheia de graça pra cima dum garotinho.

Um resto de sol apontava firme na linha dos seus olhos e isso fazia

com que risse mais que o riso espontâneo - espremia um pouquinho a

vista pra evitar os últimos raios alaranjados e ver o menino. O

menino tinha se levantado e, agora, virado pra ela, continuava a

rabiscar. Não podia ser uma coisa dessas; devia estar esperando o

cara da Skol virar também pra pedir mais uma. Não podia ser que

andava na direção dela. Apertou mais os olhos e viu, sem controle,

sem querer, veias debaixo do short de tac-tel - viu, dentro dos

próprios olhos ainda pintados de resto de sol, porque quase não podia

enxergar fora da própria cabeça naquele momento. Porque era crucial:

a beleza caminhava decidida a encontrá-la. E era um farrapo, ela, um

farrapinho de trin-ta-e-cin-co anos, AC/DC, Roque Santeiro, vinil.

Terrível! Ajoelhou do lado dela.

Se pudesse ter fixado os olhos em qualquer ponto, sem o nervosismo

que a fazia piscar como um estrobo descoordenado, teria definido à

sua frente as coxas retesadas, um risco fundo em cada lateral, um

peito com pêlos certos de uma cor não definida entre o castanho e o

loiro, tatuagens de outros tempos talvez. Não viu nada disso. Ouviu:

- Oiii. Desculpa eu ficar olhando, mas é que.
- Oi! (num fode)
- Tudo bem? É que eu queria te desenhar.

Num fode.

- Por quê?...////...///?!...///
- Desculpa, eu sou meio cara-de-pau. Mas tenho que ser porque às

vezes eu vejo alguém na rua, bate uma idéia... Eu estudo Belas Artes.

Queria te desenhar.
- Por quê?
- Sabe Gustav Klimt?

Sabia Klimt. Talvez ele soubesse My Funny Valentine. Tudo era

possível agora.

- Tô fazendo uma aula de art nôvô. Você parece a Judith, tem uns dois

quadros dele com esse nome, uma mulher.. eu podia fazer uma Judith na

praia, biquíni aceso, os prédios atrás. Ia ficar muito doido. Podia

meter serigrafia, Warhol, alguma coisa em cima disso, misturar tudo.

Judith era o nome da avó de alguém, meter em cima e misturar tudo uma

puta idéia. Fumaram. Aparentemente, o MOLEQUE tinha um peso inteiro

dentro da bolsinha de pano, e seda, tinha seda, não precisavam pedir

pra ninguém nem incorporar desconhecidos ao ritual, embora alguns

resistentes do pós pôr-do-sol estivessem de olho grande pro baseado

deles. Na praia, horário de verão, céu claro às 19h, ainda fica uma

penca de gente seca por um baseado. Um maluco e outro calibrando pra

naite, insistindo na fiscalização dos últimos biquínis. Às vezes,

rola um showzinho em palco improvisado ou mesmo sem palco, na areia

da praia mesmo, com eletricidade puxada dos quiosques do calçadão.

Não era o caso naquele fim de dia. Não tinha nem mesmo um péla-saco

tocando violão. Só ela, o menino e uns desocupados perdidos

espalhados desencanados. Riram tanto, conversaram, descobriram

afinidades e um monte de coisa nadavê entre os dois que, por se

comunicarem com o que parecia ser uma curiosidade mútua um pelo

outro, funcionavam exatamente como as afinidades - ou seja, como

ponto de apoio, não de desestabilização do contato. E ele ainda

queria desenhar.

- Mas fica melhor sem a blusa.

Posou abraçando os joelhos, mas de um jeito descontraído. Trocaram

e-mails, esperava receber dele um esboço nos próximos dias ou, quem

sabe, o produto final daquela tarde estranha.

- Você me escreve?
- Escrevo. Valeu, Judith.
- Eu que agradeço, Klimt. - deixou um sorrisão vincar-lhe os cantos

da boca. O garoto deu-lhe um beijo no rosto. Ela não dormiu naquela

noite.

Era ridículo ir para o trabalho de olheiras por causa daquilo.

Levantou-se da cama sem ter repousado, alimentou o gato, tomou banho

quente, limpou a caixa do gato, vestiu-se, beijou o gato entre as

orelhas, fechou a porta e saiu. Foi assim de segunda a sexta-feira,

as bolsas debaixo dos tornando-se cada dia mais escuras. E nenhum

e-mail.

O risco-país aumentou por causa da possibilidade do candidato da

opisção à presidência ganhar as eleições. Uma possibilidade, entre

tantas outras, projetava-se do futuro para o presente e altera esse

presente, fazendo o mercado tremer. Saiu da página de economia e leu

o horóscopo. "Faça um acordo com o Tempo: você deseja as coisas e

elas vão acontecer, se você fizer todo o possível para isso. Mas só

quando Ele decidir. Paciência." Tinha, e muita; precisava recordar os

lábios grossos, a expressão dos olhos enquanto desenhava, o jeito

como a estudava, a vitória de ter sido escolhida para o retrato entre

tantas mulheres naquela praia imensa e superlotada. Queria eliminar

as preocupações que causavam o fato de ele ainda não ter enviado

e-mail algum com qualquer retrato. Tinha que confabular com o

horóscopo e fazer as coisas acontecerem. E, mesmo com todos esses

afazeres mentais de extrema importância, precisava escrever sua

coluna sobre a repercussão das pesquisas eleitorais no mercado.

Ignorou o burburinho nas outras baias ao redor da redação e começou:

"É preciso negociar com o Tempo..." Sua opinião era de extrema

importância para que as pessoas tivessem paciência. O futuro devia

ser abandonado à frente, enquanto as mentes ansiosas que especulavam

sobre ele fizessem o caminho de volta ao presente para vivê-lo sem a

restrição a uma única possibilidade. "Tudo é possível agora mas, se

projetamos as expectativas num só acontecimento, paralisamos o

presente. É provável mesmo que o capital produtivo e sua correia de

transmissão - investimentos, ampliação, produção, serviços, empregos,

salários, encargos, tributos, confiança e futuro - sofram com um

arrocho após a eleição. A vitória do candidato representa um risco de

ruptura, pois os governos de seu partido pelo país sustentam um

histórico de apoio às invasões e quebras de contrato (vide o caso do

Rio Grande do Sul). O mercado é resultante da razão e ação de 6

bilhões de pessoas, de modo que, quando o risco-país aumenta,

sinaliza receios e incertezas. Portanto, investir por aqui com a

possibilidade de ele vencer, é arriscado. Para atrair capital e

investimento teremos que pagar mais. O risco-país é a realidade que

vem do futuro e temos que estar preparados para encará-lo." O

garoto-do-futuro, Marty McFly agora com Parkinson, tinha 24 anos

quando fez papel de um adolescente em "De volta para o futuro", filme

de 1985. Não parecia velho.

A única probabilidade interessante era encontrar Klimt na

praia. Seu nome era Beto (não sabia se de Roberto, Alberto ou

Humberto) e Judith, ou Ana Maria Chávez, não tinha mais paciência

para explicar ao país que era preciso correr riscos. Escreveu,

portanto, apenas: "É preciso correr riscos".

Sua coluna estava pronta, não se incomodou em revisar. Não releu mais

que o primeiro parágrafo. Pegou a bolsa e saiu perseguindo Ipanema. Era uma sexta-feira e a praia estava cheia das pessoas que gozavam de férias no verão. Fugir da redação no meio do expediente era uma realização gostosa, perturbada apenas pela incerteza do paradeiro do garoto entre o mar de bundas que inundava a areia.













6.5.03

Eu me sinto melhor quando meus amigos estão se dando bem. Não que o dinheiro deles vá parar no meu bolso; se eles recebem um salário, o destino dessa grana é certo e reto como um (eu ia dizer padre, mas me deparei com o óbvio ridículo que a comparação implica, e aí tentei achar outro candidato a modelo de retidão entre todas as figuras e profissões que conheço e nada me passou pela cabeça. Do presidente ao voluntário do CVV, estão todos corrompidos até o talo)... esquece. A questão é que o salário dos meus amigos não passa pelas minhas mãos pedintes a menos que eu concorde em pegar as notas sujas de vermelho, cor da raspa do saldo negativo deles no banco. Eu posso conseguir minhas próprias notas manchadas, então não peço empréstimo aos amigos. A questão é que eu me sinto mais confortável se eles estão trabalhando e, mal ou bem, pagando suas contas. Isso me dá a impressão de que as coisas estão absolutamente normais por aí, ainda que a minha própria vida seja a representação terrena do caos que rege o universo. Preciso saber que, em algum lugar muito próximo de mim, pessoas trabalham e são remuneradas, pessoas que tiveram as mesmas oportunidades que eu, que estudaram, foram bem alimentados e deixaram boa impressão numa entrevista de emprego. Enquanto eu leio e escrevo e odeio tudo que eu escrevo e rasgo ou deleto e não atendo o telefone e não acredito em nada que me dizem, essa gente circula por aí acreditando no acordo com o mercado e recebendo dinheiro pela crença que sustenta, crença é crédito e débito. Acordar em determinado horário, pegar a condução e entrar num prédio onde ficam fazendo alguma coisa o dia inteiro. No final do dia (eles chamam o dia de expediente), voltar pra casa e ligar a televisão. É isso que todo mundo tem que fazer e eu gosto de saber que ainda conheço gente que faz exatamente o que deve ser feito. Eu não tenho cumprido minha parte no trato social (trabalhar e reclamar), mas sinto-me confortavelmente amparada pela consciência da capacidade ilimitada pro trabalho que pulsa em meus amigos.

Não pensei em nada disso na hora de subir as três escadas rolantes e andar aquele monte de chão debaixo da terra que é o metrô de Copacabana. Quem foi o palhaço que projetou a Cardeal Arcoverde? Por essas e outras não pago imposto. Pensei em Jackie Chan enquanto ia carregando quatro sacolas cheias de roupa suja acumulada por vários dias. Em duas delas, eu tinha colocado as roupas molhadas que eu desisti de lavar no meio do processo, quando me dei conta que ainda não tenho varal pra secar tudo. A idéia era levar a roupa pra casa de um amigo e lavar por lá, mas as sacolas já estavam rasgadas demais quando emergi do buraco do metrô. Ainda por cima, tava chovendo. Olhei pra trás e reconheci a trilha de peças familiares que logo logo algum mendigo mais esperto ia querer pegar se eu não fosse rápida: uma das minhas cinco camisetas brancas iguais, meu calção roxo e amarelo do boxe, um par de meias amareladas (originalmente brancas)... voltei, catei tudo e enfiei no que restava da sacola maior. Não dava pra ir até o Leme assim, acabei deixando tudo na primeira lavanderia que eu vi, logo em frente à estação. Paguei metade da conta e fui pra casa do cara. O Jackie Chan teria feito o mesmo. Suportaria com dignidade toda a distância percorrida carregando o peso e cataria as roupas que caíram no chão sem precisar da ajuda de ninguém e aí procuraria uma lavanderia. Pastelaria também é um negócio da China mas não resolveria o caso. A lavanderia onde eu deixei as roupas não tinha nenhum chinês. Tinha uma menina que não sabia operar o computador e pediu meu endereço e demorou à beça pra digitar o nome da rua, que tem cinco letras. Fiquei lá esperando. Eu tinha que chegar na casa do meu amigo antes das 14h pra render ele na vigília. O banheiro dele tinha explodido ou alguma coisa assim e eu tinha que ficar de olho enquanto o pedreiro quebrava os restos de azulejo pra colar tudo de novo, enquanto meu amigo ia pro trabalho.

5.2.03

A atriz está usando uma saia longa abaixo do umbigo, deixando à mostra um piercing prateado com jóia pendurada e uma barriga perfeita. O top é decotado e ela afasta os cabelos para trás liberando o caminho para os fotógrafos. A atriz já pulou para o lado perigoso dos 30 e passa a mão esquerda nas minhas costas de um jeito maternal, como se fôssemos amigas durante todos esses anos. Talvez a gente seja porque, de acordo com o que ela me conta, nós todos somos um. Todos nós temos a mesma partícula dentro de nós: as estrelas, as árvores, os animais e todos os seres humanos possuem. A atriz esfrega a mão nas minhas costas e pergunta se eu já li sobre o quark. As luzes apagam e uma voz no alto-falante anuncia que, a partir daquele momento, todos os lugares vagos poderão ser ocupados pelas pessoas que ficaram de pé. Eu ganho um assento e assisto ao desfile ao lado da atriz, que retira a mão de minhas costas delicadamente, roçando de leve as pontas das unhas na minha camiseta.

A grife Graça Ottoni trouxe à passarela um outono-inverno confortável que também ousou ser sexy, com apliques e estampas florais, blusas e vestidos finos com mangas em crochê, xales multicoloridos e calças leves. Não que eu entenda porra alguma sobre isso mas qualquer jornalista na minha posição tem que aceitar quando é escalado para cobrir O Evento de Moda do Rio de Janeiro, o Fashion Rio / Fashion Business. Unindo sob a estrutura do Museu de Arte Moderna, o MAM, moda e negócios, o evento pretende reerguer a indústria têxtil carioca, que hoje amarga um último lugar no ranking do mercado, atrás de São Paulo e Minas Gerais. Este é o Fashion Rio 2003. E um jornalista na minha posição, seria o quê? Alguém cujo quark universal e intergaláctico obedece ao quark de um chefe que, não satisfeito em me mandar cobrir desfiles de moda, também me enviará à Sapucaí em março pra cobrir desfiles de escolas de samba. Porque ele pode.

Eu não tenho uma partícula sequer em mim que jamais tenha remotamente se interessado por moda. Tenho 1,60 de altura e briguei com meu peso por muitos anos, meu cabelo é longo e ondulado e eu amarro a cara na defensiva quando vejo uma câmera. Pra completar, meu chefe não conseguiu (SIC) um substituto pra mim no meu trampo diário, que corresponde a atualizar um site sobre toda a programação cultural do Rio de Janeiro (da última vez que checaram era uma cidade enorme e bastante movimentada), desde o HTML das páginas e as fotos até lidar com os leitores, correr atrás de promoções para os leitores, lidar com os leitores e escrever as matérias e tijolinhos com as referências sobre o que acontece na cidade. Sem substituto pra isso, eu tenho que passar o dia e parte da noite assistindo a desfiles de moda e ainda dar conta de todo o resto. Eu acredito que, neste momento, minha sanidade mental está a 15% e o corpo... cansado. Cansado demais.

Desde a abertura do evento na segunda-feira, 3, durmo as duas, três da madrugada e chego aqui às 13h pra começar nova maratona. Subo e desço correndo uma rampa que leva de uma das salas onde acontecem os desfiles à sala de imprensa, porque é preciso dar as notas imediatamente assim que os desfiles terminam. Não posso passar o texto lá de cima por celular a um outro membro da equipe porque não existe um outro membro da equipe exceto meu fotógrafo, Celso, um coroa gente boa que corre pra cima e pra baixo comigo também. Me ajudou pacas no primeiro dia em que cheguei aqui e tava afônica por causa de umas festas do fim de semana. Ele se aproximava com o ouvido pra entender as instruções que eu tentava sussurrar antes de cada desfile ou quando avistava alguma personalidade - nossa querida atriz do primeiro parágrafo era uma delas - sentada na primeira fila.

Hoje, quarta-feira, minha voz já está de volta mas ainda vacilante. E eu tusso no ar-condicionado assassino da sala de imprensa, usando um casaquinho patético de velho sobre roupa toda preta e um tênis laranja. O bom desse lugar é que tudo é válido. As pessoas vêm com um puta vestidão ou um belo jeans e lá embaixo tascam uma sandália Havaiana da série mais tosca, mais rasteira. Uma calça velha cortada e uma camiseta preta e um tênis conga verde. Um tomara-que-caia transparente e sandálias de salto fino também aparecem. Resumindo: se você estiver mulambento, bem-vindo. Se você estiver alinhadíssimo, bem-vindo. Mas que seja tudo muito natural. Acho que essa foi a primeira lição de moda que eu aprendi na minha vida. Vou tentar não esquecer.

O desfile acaba e a atriz se vira pra perguntar onde vai sair a matéria e se a foto entra. Eu respondo e mando outra pergunta, lembrando que o chefe queria:

- Como você vai de amores? (Como eu pude?)

- Não tenho ninguém em vista. Mas eu quero ser vista.

Entendida a mensagem, desci para contar aos leitores sobre o filme em que ela interpretará Madalena ("Vai ter Jesus, Judas... é de uma diretora estreante").

Noutra apresentação, da marca Permanente-Andrea Saletto, o ex-Farofa Carioca e atual hype da cidade Seu Jorge encarnou uma mistura de puxador de samba e MC, fazendo ao vivo a trilha sonora do desfile, ao lado do DJ Negralha. Seu Jorge é sucesso com os shows da mega banda (16 integrantes, entre eles Moreno Veloso, a atriz Thalma de Freitas e Amarante, do Los Hermanos) Orchestra Imperial, que lota o Ballroom tocando bolero, cha-cha-cha e sambas clássicos para a juventude tostada de praia, que bate palma e pede bis. Cercado pelos fotógrafos no fim do desfile, garantiu que a Orchestra vai dar mais caldo que as apresentações ao vivo: "A Orchestra vai gravar", declarou, "estamos decidindo repertório". E sumiu na direção dos camarins, deixando pra trás o burburinho por conta da ausência de seu tradicional black power, agora tosado, e a opção pelo kilt com estampa da coleção Permente e sandálias. As jornalistas adoraram. "Tão másculo".

Por volta das 19h eu consegui agarrar alguns sanduichinhos que moravam no balcão do buffet na sala de imprensa. Os agrados vêm em bandejas, na forma de sorvetinhos de frutas ou doces finos. É preciso adoçar essa turma. O caderno Ela, do Globo, é um dos maiores incentivadores do Fashion Rio e fala muitíssimo bem do evento, assim como Joyce Pascovitch e Erika Palomino. Mas sempre há aqueles que vêm determinados a falar mal de tudo, antes mesmo de conferir as coleções.

- O Fashion Rio não existe. Porque não existe moda no Rio.

Por mais desligada que eu seja do assunto, já ouvi isso milhares de vezes. Desta vez, estou ouvindo de J.L., uma das estilistas que trabalham para a Cavendish (que não está no Fashion Rio), num pub irlandês. Eu e ela freqüentamos religiosamente esse bar e eu nunca me lembro de que ela trabalha com moda porque é um dos últimos assuntos que qualquer pessoa tenta puxar comigo. Dessa vez, eu tomei a iniciativa e agora ouvia sua opinião dramática sobre o evento.

- Em São Paulo sim! Aqui, não tem criação. Não adianta fazer um evento de moda numa cidade que não cria moda.

Com tal fracasso vaticinado antes mesmo de eu apresentar minha credencial pela primeira vez ao segurança na entrada da sala de imprensa, eu esperava o pior.

Meu fotógrafo chegou e a gente tem que tentar invadir um camarim antes do primeiro desfile porque o chefe quer mais bastidores.

Continua...







4.2.03

Abrigar sem esconder é o mote da Tessuti para o outono-inverno carioca e, de acordo com a estilista da marca, Clara Vasconcelos, a coleção deverá favorecer "a mulher que usa moda como sedução", como contou ao Terra no camarim durante os preparos para seu desfile.

Ouvindo pela primeira vez a trilha sonora que vai embalar sua passarela, Clara explicou que a marca "foi buscar mais uma mulher que um tema. É uma coleção que refaz looks esportivos em versão chic, o esporte vira uma opção sofisticada".

E que tipo de mulher a Tessuti veste? "Uma mulher que usa a moda como objeto de sedução". Para exemplificar, citou Cirstiana Oliveira, Flávia Alessandra, Glória Maria e Débora Bloch. "Mas tem tantas outras que eu gosto também", adicionou.

A estilista estava tranqüila no backstage, mostrando cada peça da coleção ao lado das fotos das tops. Diante da tatuadíssima Marina Dias, comentou "Ela é linda, não é?" e seguiu falando de suas peças preferidas na coleção: o macacão cargo de chifon, o parco de tela em seda pura e o maxi moleton de chifon. Verde e, acima de tudo, tons achocolatados reinam absolutos: "O chocolate cria desejos", contou.

Sobre o Fashion Rio, Clara vê saldo positivo total: "O amadurecimento do Rio no assunto moda é gigantesco e conciliar Fashion Business e Fashion Rio vai ter grande influência no mercado. Em dois, três anos teremos um evente de proporções ainda maiores, que vai trazer bons resultados para todos."

Um desfile de moda com puxador de samba. Ou seria MC? Seu Jorge encarna uma mistura dos dois e ajudou a construir, ao lado das batidas do DJ Negralha, o clima moderno urbano da Permanente-Andrea Saletto. A marca veio com peças constituídas 100% de cânhamo, discretamente estampadas, moletons em poliéster, viscose e algodão, malhas também de hemp (55% de cânhamo na composição), tafetás, nylon e chifons amassados em pois ou listras. Os zíperes se consolidam em bermudas e saias, assim como os bolsos largos na frente e atrás, e a bolsa-cinto. A coleção conquistou Seu Jorge, que vestia um kilt com a estampa cinza da coleção e sandálias, além de um novo corte de cabelo, sem "black power".

Contrastando com a Permanente, a Coven fez, em seguida, um desfile altamente anos 80, desde a trilha sonora até as cores fluorescentes e mangas bufantes na passarela. Tricô esportivo 80´s é a definição do desfile da marca, que aconteceu na sala 2, tenda que ontem, completamente no escuro exceto por telas com imagens, servia à exposição da Maria Bonita.

O dia de ausência quase total de famosos virou o jogo a partir do desfile da Tufvesson, que atraiu _____________